terça-feira, 23 abril 2024

Os efeitos do ‘tratamento precoce’ contra Covid

Quando Edson José da Rocha, 51, recebeu o diagnóstico de Covid-19, veio junto a indicação do chamado “tratamento precoce”, com drogas como azitromicina e ivermectina. Quando foi internado com a doença, foi a vez da cloroquina e, logo em seguida, passou a sentir uma sensação estranha no peito. Logo depois vieram a piora e, menos de um mês após a entrada no hospital, a morte.

Quem conta a história de Edson é sua irmã, Ivone Meneguella, médica intensivista de hospitais em Campinas. Segundo ela, uma arritmia cardíaca e a piora do quadro clínico ficaram claras após o terceiro comprimido de cloroquina que o irmão tomou, apesar do apelo que ela tinha feito aos seus médicos de não dar a droga por causa do histórico de arritmias na família.

Após o início da medicação, Edson também desenvolveu grande cansaço, dores na barriga, diarreia e desidratação. “Eu sinto o meu coração bater na boca”, dizia Edson, segundo conta Ivone. O policial penal morreu em 26 de agosto do ano passado.

Os medicamentos do “tratamento precoce” da Covid-19 estimulado pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) podem causar arritmia cardíaca, sangramentos e inflamação no fígado, segundo especialistas.

Após um ano de pandemia e dezenas de estudos, a cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina não mostraram efeito benéfico no tratamento da doença, e não há estudo convincente sobre a eficácia antiviral da ivermectina.

Em nota conjunta, a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) e a AMB (Associação Médica Brasileira) afirmam que as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce para a Covid-19 até o presente momento.

Como escreveu o médico infectologista e professor da USP (Universidade de São Paulo) Esper Kallás em sua mais recente coluna da Folha: “É compreensível que, no início, fossem adotados medicamentos sem benefício comprovado. Afinal, muitos pacientes estavam morrendo. Entretanto, há meses, temos dados suficientes para abandonar o uso dessas medicações, por provas contundentes de que não ajudam no tratamento e também podem estar implicadas em riscos adicionais não desprezíveis”.

O cardiologista Bruno Caramelli, professor e pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da USP (Universidade de São Paulo), afirma que em cerca de três meses, ainda no início da pandemia no Brasil, chegou a receber no Hospital das Clínicas da USP três pacientes de Covid-19 que estavam tomando cloroquina e tiveram arritmias graves.

Segundo o médico, esse tipo de arritmia é raríssima, mas tem forte conexão com o uso do remédio. Em quase 30 anos de profissão, o cardiologista havia recebido, antes da pandemia, apenas três casos semelhantes, geralmente em pacientes que faziam algum uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina – os remédios são oficialmente indicados para doenças como lúpus e malária.

“A Covid-19 pode gerar alteração cardíaca, e as pessoas ainda tomam um remédio que, além de não funcionar contra a doença, pode causar arritmia. A Covid-19 mata uma porcentagem muito baixa dos pacientes, mas com milhões de doentes esse número cresce. Se tivermos o uso em larga escala da cloroquina, vamos ver dezenas de pessoas com arritmias graves”, diz Caramelli.

O caso de Edson não foi o único que Ivone acompanhou. Trabalhando no enfrentamento à Covid-19, a intensivista conta que já viu um caso de encefalite (com presença de confusão mental) e outro de hepatite medicamentosa por causa do uso de ivermectina.

Ainda que reações graves a remédios como a cloroquina, ivermectina e azitromicina sejam raras, o médico Christian Morinaga, gerente-médico do pronto-atendimento do Hospital Sírio-Libanês, afirma que desde março de 2020 houve aumento no número de pacientes que procuraram o hospital com sintomas leves e graves após tomarem medicamentos sem orientação médica. A principal causa para a automedicação é o medo da Covid-19.

“Chegamos a atender pacientes com arritmia e sangramento, provavelmente causado pelo uso de medicamento sem prescrição médica”, afirma o médico.

De acordo com Morinaga, há registros de manifestações mais leves também, como diarreia, náusea e reações alérgicas.

“Com a população mais angustiada e a circulação de notícias falsas, ficou mais comum ver pacientes chegarem ao hospital com o efeito colateral de alguma medicação. Recebemos até pessoas assintomáticas que usam esses remédios como forma de prevenção. Não tem sido incomum observar casos mais graves, que precisam de hospitalização”, diz o médico.

Raquel Stucchi, pesquisadora da Unicamp e membro da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), também afirma estar ouvindo relatos sobre hepatites medicamentosas relacionadas ao “tratamento precoce”.

Em redes sociais há relatos de pacientes que usaram os medicamentos. Um deles estava no perfil de uma apoiadora de Bolsonaro, com publicações defendendo o uso de cloroquina e outras colocando em dúvida a segurança de vacinas. Após o contato da Folha, o perfil deletou a mensagem que falava sobre efeitos colaterais.

Em junho de 2020, Fernando Abreu De Araújo, 30, de Iguatu, no Ceará, teve Covid e o seu médico receitou ivermectina e azitromicina.

“A primeira semana foi horrível. Eu não sei se foi efeito dos remédios, mas ao mesmo tempo em que estava com dor no peito, estava com muita dor nos rins. Comecei a tomar muita água pra ver se a dor diminuía”, afirma ele, que não chegou a procurar serviços de saúde para monitorar a situação. Mas após interromper o uso das drogas (que durou cinco dias), as dores sumiram.

“Todos estão desesperados, mas temos de continuar lutando para que as pessoas não caiam no conto do vigário, que é pior. Há pessoas, médicos e autoridades veiculando uma mensagem extremamente perigosa sobre esses remédios”, afirma Caramelli.

Segundo Stucchi, além de estudos não apontarem eficácia das drogas, quem as toma pode acabar achando que vai melhorar e demorar para procurar ajuda quando o quadro de saúde piora.

“O risco de ter complicações com os medicamentos é baixo, mas o grande crime é desviar o foco, dizer para as pessoas que, usando os remédios, elas vão estar protegidas, podem ir para a rua, aproveitar a balada e relaxar o isolamento social”, afirma Caramelli.

De acordo com Morinaga, do Sírio-Libanês, mesmo os pacientes reumatológicos que fazem uso contínuo da hidroxicloroquina ou da cloroquina precisam visitar o médico com frequência para avaliar o risco do uso prolongado das substâncias.

E até mesmo remédios que têm comprovação científica de melhora da Covid-19, caso de corticoides como a dexametasona, que é indicada apenas para casos graves da Covid-19, precisam de monitoramento e podem fazer mal nos casos mais leves da doença, alerta o médico.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) já fez esse alerta, contraindicando seu uso para os casos mais leves. Segundo Morinaga, desrespeitar a recomendação pode prejudicar as defesas do corpo, abrir caminho para alguma infecção microbiana e agravar o quadro clínico.

“A maior parte das sociedades médicas são contra a prescrição do ‘tratamento precoce’. Não há tratamento para o paciente com caso leve, que não está internado. O recomendado é o isolamento em casa e o monitoramento dos sintomas”, afirma Morinaga.

Em nota conjunta, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Associação Médica Brasileira afirmam que as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no “tratamento precoce” para a Covid-19 até o presente momento.

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