quarta-feira, 24 abril 2024

Erica: tentando quebrar paradigmas

“Mulher, negra, trans, nordestina. Mulher, negra, trans, nordestina. Mulher, negra, trans, nordestina.”

Primeira deputada transexual da história da Assembleia Legislativa de São Paulo, Erica Malunguinho, 37, reclama que toda reportagem sobre ela coloca após seu nome a sequência de palavras “mulher, negra, trans, nordestina”.

“Jura que sou assim?!”, ironiza a parlamentar do PSOL, que marcou a entrevista com a reportagem no café “Por Um Punhado de Dólares”, no Centro de São Paulo, decorado com camisetas estampadas com “Lula Livre”, “#EleNão”, Haddad, CUT, MST e o símbolo do Corinthians.

“É preciso debater por que sou apresentada dessa forma. Isso torna as bandeiras estanques e é, inclusive, um desrespeito. Nas nossas construções ancestrais históricas, não havia nada disso.”

Em seu perfil no Facebook, entretanto, escreve: “Esse corpo é preto, de mulher, trans e nordestino”. É uma reafirmação por enquanto necessária, ela pondera, para lembrar “os grupos apagados da cidadania”.

Desde a eleição, apresenta-se como Mandata Quilombo. Ao mudar “mandato”, um substantivo masculino, para o feminino, despreza a gramática da Língua Portuguesa em prol do que considera ser uma atitude política.

Suas causas são as do movimento LGBT. É a mesma lógica que a faz usar eventualmente o “X” no lugar do “O”. “Vocês vão entrevistar todxs os deputadxs?”, perguntou à reportagem, utilizando a troca que tem se tornado comum em meio ao feminismo e às discussões sobre gênero.

Já o Quilombo, que seria, digamos, o sobrenome da Mandata, carimba o compromisso com o movimento negro. Em 2016, abriu no bairro de Campos Elíseos, na região central, um espaço que chama de quilombo urbano, com debates e eventos culturais em torno da comunidade negra.

O nome do espaço é Aparelha Luzia. Aparelha faz menção aos aparelhos, esconderijos utilizados por movimentos de esquerda na época da ditadura militar no Brasil. Luzia é uma referência ao crânio humano mais antigo do continente americano.

Ali, quem não é negro tem que “negociar a entrada”. Não é racismo, segundo Erica, mas resposta a ele.

“É uma negociação de pertencimento, não é impossibilidade da entrada. Nós, pessoas negras, LGBTs, estamos constantemente negociando nosso pertencimento. Quando vamos a bairros brancos, e isso existe, claro, temos que pensar na roupa, no cabelo. E há lugares que efetivamente impedem nossa entrada”, afirma ela, citando casos de violência recentes contra negros, como o da advogada Valéria dos Santos, algemada durante uma audiência, e a morte do jovem Pedro Gonzaga, golpeado por um segurança de supermercado, ambos no Rio.

Segundo Erica, já houve problemas na Aparelha com pessoas brancas “que tentaram fotografar moradores de rua”, que costumam frequentar o local, “e os corpos de mulheres pretas”. “Também já aconteceu de desrespeitarem nossa chef de cozinha e de não me considerarem como uma gestora, um ser político”, afirma.

Ela admite que “a Aparelha é um erro do ponto de vista da sociedade”. “Mas é um acerto considerando como a sociedade organizou a sua sociabilidade. Lugares de resistência não deveriam existir. Mas existem porque são necessários”, diz.

“É preciso haver espaços de proteção, onde os corpos negros possam estar livres e seguros. E, para isso, é necessário que pessoas que não pertencem à comunidade negra ou não são racialmente letradas saibam do que se trata. Não podemos ser vistos com exotismo, como objetos, como corpos que podem ser tocados de qualquer forma.”

TRAJETÓRIA: DA INFÂNCIA DIFÍCIL À FORMAÇÃO SUPERIOR
As questões raciais e de gênero estão fortemente presentes na formação de Erica. “Filha de mãe solteira”, nasceu em Água Fria, um bairro de periferia do Recife (PE).

A mãe, que hoje tem 74 anos, “foi a escolhida da família para estudar, algo comum em famílias negras, com acesso escasso a recursos”, ela conta. Fez então magistério, deu aulas e depois se tornou enfermeira.

Na reta final do ensino fundamental, em escola pública, Erica precisava escolher entre o técnico ou o científico, normalmente a opção de quem tem planos de fazer uma faculdade. “Uma professora me disse que nunca viu pobre fazer científico, então escolhi técnico em contabilidade.”

Na adolescência, era um garoto gay que já questionava o gênero. Ainda como uma espécie de performance artística, vestia-se de mulher e andava pelas ruas para observar a reação das pessoas. O preconceito, diz, vinha de todos os lados e teve problemas certa vez quando foi a um bar gay de elite na capital pernambucana.

Mudou-se para São Paulo e conseguiu uma bolsa do governo federal para cursar pedagogia no Instituto Singularidades, considerado de vanguarda na formação de professores.

Socióloga e educadora, Gisela Wajskop, 61, foi a fundadora da instituição e se lembra bem de Erickson da Silva, nome de registro de Erica, que só mais tarde iria se tornar transexual.

“Era um bom aluno e sempre foi muito questionador e atormentado com diferentes questões. A de gênero se mostrava naquele momento mais presente do que a negritude, e debatíamos muito nas aulas.”

Erica já deu aula para crianças, adolescentes, em escolas públicas e privadas, e na formação de professores, sempre associando arte, cultura, educação e política.

PARTIDO ‘SOCIALIZOU POUCO’
A deputada conta que sempre teve simpatia pela esquerda, mas a filiação ao PSOL ocorreu apenas pouco antes do processo eleitoral. Para a campanha, recebeu do fundo partidário R$ 5.000 e fez piada com a quantia em um debate recente: “Esse valor foi disponibilizado por um partido socialista só que não… Socializou pouco”.

Com poucas doações e um crowdfunding, espécie de vaquinha online, conseguiu um orçamento de pouco mais de R$ 20 mil. Foi eleita com 55.223 votos.

Não atribui o resultado apenas às redes sociais. “Eu tinha pouco mais de 15 mil seguidores no Instagram na eleição. Não é uma matemática simples. As pessoas acordaram que é necessário que esse discurso esteja em disputa na narrativa da política. Assim como temos figuras extremamente conservadoras, violentas, que não se importam com quem não está no poder, há aquelas no contraponto extremo, como eu, que tenho como fundamento a emancipação coletiva.”

A deputada diz que irá formar seu gabinete com representantes dos grupos que promete defender.

 
 

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