Um filme de mulher sobre mulheres num país conservador como o Marrocos. “Adam”, da diretora estreante e roteirista Maryam Touzani, é um retrato da busca por uma identidade feminina contemporânea na encruzilhada entre um machismo naturalizado, o chamado biológico da maternidade e o desejo de liberdade e independência da mulher.
Chamar o filme de retrato, neste caso, é mais do que uma figura de linguagem. O longa tem fotografia impressionante. As paredes puídas das casas pobres marroquinas em contraste com o colorido de roupas, panos e lenços das personagens remete à pintura barroca do holandês Vermeer e do italiano Caravaggio, em composições de luz e sombra.
O filme conta a história de Samia, uma garota do interior que, numa gravidez já muito avançada e abandonada pelo pai da criança, vaga pelas ruas de Casablanca com uma mala a tiracolo em busca de trabalho e de um lugar para dormir.
Ela é acolhida, quase a contragosto, pela austera Adla, viúva e mãe de uma garotinha de oito anos, Warda. Sua rotina monástica de dedicação ao trabalho e zelo especial pelos estudos da filha é alterada pela chegada de Samia, que bate à sua porta atrás de ajuda e cria laços imediatos com sua Warda.
O lugar de uma mulher grávida sem marido é um grande vexame naquela sociedade.
A jovem Samia, pelo mesmo motivo, elabora um plano dolorido, ainda que racional: pretende dar o bebê para a adoção porque, segundo ela, sem um pai, ele será estigmatizado por toda a vida, condenado a uma existência menor.
A questão é lógica. O bebê, adotado, teria uma família convencional e acesso a melhores oportunidades. Ela, ao retornar à casa dos pais, no interior, sem rastros daquela gestação indesejada, poderia recomeçar do zero, com potência total para se casar e construir a sua própria família convencional.
A realidade interna da menina-mãe-mulher se mostra mais complexa do que essa planilha. E levanta questões sobre o lugar da racionalidade diante do tal instinto materno.
Aclamado no Festival de Cannes e escolhido pelo Marrocos para pleitear uma vaga de filme internacional no Oscar, “Adam” transcorre sem sobressaltos, numa narrativa plácida e aconchegante.