sexta-feira, 19 abril 2024

Criolo retrata Brasil em novo disco

Cantor usa novo álbum para tratar de temas atuais, como governo de Bolsonaro e morte da irmã por Covid-19

Disco “Sobre Viver” marca retorno de Criolo ao rap, já que nos últimos anos se dedicou mais a MPB e ao samba
(Foto: Reprodução / Instagram)

Antes de fazer “Sobre Viver”, seu quinto álbum, Criolo achava que não conseguiria mais escrever um rap. “Fiquei uns três anos pensando ‘meu Deus, o que está acontecendo?'”, ele diz. “Até fazia minhas escritas, mas é tão triste o que estamos passando que isso te põe para baixo até umas horas, tá ligado?”, completa.

O disco marca o retorno de Criolo ao rap – seu último disco no estilo foi “Convoque Seu Buda”, de 2014, gênero ao qual ele dedicou uma vida, mas que ficou de lado nos últimos anos, quando se inclinou mais à MPB e ao samba. E um evento em especial acabou sendo central para a obra – a morte de Cleane Gomes, irmã do artista, aos 39 anos, vítima da Covid-19, no ano passado.

“Acabou com a gente. Arrasou minha família. Pensei que eu ia dar força para minha mãe, mas foi ela que deu para mim. Tenho que agradecer de joelhos às pessoas na minha vida. Esse álbum é um recorte de muita coisa que está aqui”, diz, mostrando com as mãos o entorno de sua cabeça.

Esses sentimentos são representados em “Pequenina”, faixa singela em que Criolo rima com o funkeiro Hariel e pontua os versos com falas de sua mãe, dona Vilani, além do refrão cantando por Liniker. “Cuidar da minha irmã/ Agora só em prece/ Ela não está mais aqui/ É que esse mundo não te merece”, ele canta.

É uma tragédia pessoal, mas que reflete um sentimento social, após anos de isolamento, crise e mais de 600 mil mortes no país. “É o que eu falo, a pandemia nunca vai acabar para quem perdeu um ente querido. Nós já vivíamos uma vida sofrida. E agora está além. É remar tudo de novo, com muita fé, não desistindo dos sonhos. É levantar a cabeça, e vamos. Mas tem horas que é louco”, reflete.

Em “Sobre Viver”, Criolo tenta se equilibrar entre esse jogo de forças, a desilusão e a esperança na arte e na fé. A princípio, o disco se chamaria “Diário do Kaos” – com “K” de Kleber, seu nome de batismo, mas o título mudou para refletir o desejo do rapper de não só retratar a desventura social e pessoal, mas também apresentar ferramentas para superar esse quadro – ou, melhor, sobreviver a ele.

TRISTEZA

“É muita tristeza, mas eu não quero que ninguém se sinta triste. Muito ódio, mas quero isso longe do coração. Muita dor, e não quero que ninguém sinta dor. Isso vem junto. Agora, como transformar isso em algo que vai pavimentar algum caminho de sobrevivência? O caos existe desde antes de meu avô nascer”, diz.

Esse caos é apresentado já nas primeiras falas do álbum, quando Criolo diz que “isso é um pesadelo, onde a morte se aproxima”. “De toda a desgraça, de tudo que te leva à depressão, à quase morte, o rap salva.”

Em “Diário do Kaos”, com tempero soul, a voz oscila como estivesse se despedaçando, enquanto ele se apresenta, evocando Racionais MC’s, como “mais um sobrevivente”.

Sem dizer o nomes, Criolo retrata o governo atual em “Sétimo Templário”, quando recupera seus flows clássicos para rimar sobre a Amazônia e o genocídio indígena e cantar que “vocês votaram na morte” e sobre o “presidente que diz ‘plau’ e depois pergunta ‘isso é matança?'”.

“Quantas vezes você já escutou ‘atira e depois pede o documento?'”, pergunta. “Meu pai já foi parado várias vezes. Por que? Porque é preto. Uma vez me acidentei, meu pai chegou do trampo. Era metalúrgico, estava com uniforme do trabalho. Do jeito que chegou, me levou ao hospital, e o pessoal chamou a polícia, dizendo que eu estava em cativeiro. Não é que li, ouvi falar, vi num filme. É louco isso, é revolta”, recorda.

Em “Me Corte na Boca do Céu, A Morte Não Pede Perdão”, ele canta com Milton Nascimento por cima de uma melodia que ecoa Chico Buarque e opõe a solidão da depressão à euforia de um Carnaval.

“Foi difícil, para nós, entender a importância do Carnaval, do desabafo, do porquê estar juntos numa rua em que só pode carro. Mas às vezes você se vê sozinho. Todo mundo festejando e você sem motivo para festejar. E não é criticar quem está se divertindo. Simplesmente tem uma hora que você pensa ‘só quero que esse dia acabe antes que ele acabe comigo’.” 

PRODUÇÃO

Com produção de Tropkillaz, Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, além do próprio rapper, “Sobre Viver” mira os sintetizadores de The Weeknd em “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais”, passeia pelo trap e pelo dub e recupera estéticas de álbuns anteriores como “Nó na Orelha”, de 2011, e “Convoque Seu Buda”, de 2014. 

É o Criolo desiludido da já clássica “Não Existe Amor em SP”, mais de dez anos depois, olhando para o Brasil do governo atual e pós-pandêmico, se esforçando para lidar com a dor e com a raiva.

“Esse abismo social já estava aí antes da pandemia. Ele se fortaleceu com a pandemia, a pandemia vai acabar e ele vai continuar”, diz. “O bagulho tá louco, irmão. Olha o número de pessoas abaixo da linha da pobreza, o quanto piorou. Isso porque são números”, acrescenta.

Enquanto se questiona se a ascensão social de pessoas periféricas é também uma vitória do sistema e aponta o racismo religioso, Criolo se agarra à fé e à música para apresentar táticas de sobrevivência não só para o país, mas para ele próprio. Como se manter são em meio ao caos?

REFERÊNCIA

“Não sou referência para ninguém, mas tem um monte de gente que me ajuda e não me faz desistir. Peço desculpas, mas não tenho essa resposta para você”, diz, emocionado. “Estou no processo. É cuidar dos meus pais, que estejam bem e tranquilos no meio dessa desgraceira toda. Ainda estamos vivendo o luto – e vai demorar muito tempo. Que venham a música e a poesia e de algum jeito isso nos conforte”, acredita.

“Sobre Viver” começou a ser esboçado há um ano (Foto: Reprodução / Instagram)

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