Antes de ganhar o epíteto de Madrinha do Samba, Beth Carvalho cantou jazz, bossa nova, toada, forró, canção de protesto, música de festival. Mas o chamado das rodas e dos terreiros, do som dos subúrbios e dos botequins, bateu-lhe mais forte nas veias.
A sambista morreu nesta terça-feira (30), aos 72 anos, no Rio de Janeiro. Desde o início do ano, estava internada no Hospital Pró-Cardíaco. A causa da morte não foi informada. Em 1972 ela resolveu procurar Nelson Cavaquinho e cavar um samba inédito.
Aos 26 anos, ainda com rostinho de menina, teve de vencer o medo que sentia daquele homem de pele azeitonada, cabelos prateados e olhos de peixe morto, que podia ser um grosso ao tratar com as pessoas, e estava sempre ou tocando violão ou levantando copos. Ganhou “Folhas Secas”, gravada no LP “Canto por um Novo Dia” (1973), o primeiro inteiramente dedicado ao samba.
“Folhas Secas” – que também teve um registro de Elis Regina na mesma época e acabou criando uma rusga entre as duas cantoras – virou um clássico instantâneo na voz de Beth. Assim como o samba-canção “As Rosas Não Falam”, de Cartola, garimpado para o disco de 1976, “Mundo Melhor”. No ano seguinte repetiu a dose com o mesmo compositor, gravando a obra-prima “O Mundo é um Moinho”, última faixa de “Nos Botequins da Vida”, um de seus melhores trabalhos.
Àquela altura, Beth Carvalho era uma sambista batizada e crismada, queridíssima no meio, respeitada tanto na Mangueira (sua escola do coração) como na rival Portela, com olho clínico para descobrir pepitas desconhecidas do grande público. E com memória de HD para guardar zilhões de músicas na cabeça.
(Sou testemunha e dou fé: ouvi Beth enfileirar o repertório quase completo de Nelson Cavaquinho – sobretudo aqueles sambas que o próprio jamais lembraria – numa noite de cerveja farta no Mirante do Leblon.) Em 1974, o estouro de “1800 Colinas”, de Gracia do Salgueiro, indicou o caminho: “Ó Deus, eu preciso encontrar meu amor/ Pra matar a saudade que quer me matar”. Quem hoje escuta essa gravação quase amadora em recursos técnicos, realizada na nanica Tapecar, tem a certeza de que Beth foi uma genuína sambista – sofisticada e ao mesmo tempo de enorme apelo popular.
Elizabeth Santos Leal de Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de maio de 1946. Desde pequena, com a mãe, frequentou a avenida, atraída pelo som do surdo, e ouviu a coleção de discos do pai: muito Silvio Caldas e Elizeth Cardoso, Aracy de Almeida cantando Noel Rosa.
Típica adolescente da zona sul carioca, aluna do tradicional colégio Andrews, apaixonou-se nos anos 1960 pela batida do violão de João Gilberto. Resolveu aprender o instrumento para não fazer feio nas festinhas de apartamento e no circuito de shows amadores em colégios e faculdades.
Sua carreira como cantora profissional começou justamente na onda da bossa nova. Em 1964 gravou um compacto com “Por Quem Morreu de Amor”, da dupla Menescal & Bôscoli. Mas, no ano seguinte, lá estava o gênero centenário lhe rondando: participou do show “A Hora e a Vez do Samba”, ao lado de Nelson Sargento e Noca da Portela.
No auge dos festivais, tirou o terceiro lugar no FIC de 1968 com “Andança”, de Edmundo Souto, Paulinho Tapajós e Danilo Caymmi, que na época também iniciavam suas carreiras. Na própria casa da cantora, Danilo e Edmundo compuseram a melodia (a parte do famoso contraponto é uma sacada de Danilo), enquanto Paulinho fez a letra que fala sobre a vida de um andarilho.
Foi seu primeiro grande sucesso e a música que tornou Beth Carvalho conhecida em todo o país. Desde então, nunca mais alguém deixou de cantar “Andança”, esgoelando-se numa rodinha de acampamento no mato e maltratando as cordas de um violão.
Ela esteve na ponta de lança de uma explosão musical. Cinquenta anos depois da geração pioneira do Estácio – que, no fim dos anos 1920, deu formato ao samba urbano moderno – uma roda de pagode feita por desconhecidos amadores, na quadra de um bloco do subúrbio carioca, alterou a forma de se tocar e compor samba, revelando uma nova matriz na evolução do gênero.
Foi um momento de transformação, com direito a instrumentos adaptados, quase inventados, que trouxeram uma dinâmica diferente ao ritmo: o repique de Sereno, o tantã de Ubirany e o banjo de Almir Guineto, todos integrantes na época do conjunto Fundo de Quintal.
A turma do Cacique de Ramos -Guineto, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Jovelina Pérola Negra e outros mais – apareceu, entre o fim da década de 1970 e o início da de 1980, sob as bênçãos da “madrinha” Beth, que em 1978 gravou o LP “De Pé no Chão”, um dos marcos da novidade.
A faixa de abertura,”Vou Festejar” (de Jorge Aragão, Dida e Neoci), tornou-se o maior sucesso do Carnaval no ano seguinte: “Chora/ Não vou ligar/ Chegou a hora/ Vais me pagar/ Pode chorar…”. Era um típico samba de embalo, feito para o Cacique, que, no entanto, não chegou a ser cantado nos desfiles do bloco. A música, apresentada com a forte percussão em primeiro plano, foi a peça que abriu os caminhos para a moda do pagode, que dominaria a produção fonográfica brasileira nos anos seguintes.
No livro “A Canção no Tempo (1958-1985)”, os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello contam que, num show de Beth Carvalho em São José dos Campos (SP), as mulheres da plateia espontaneamente tiraram os sapatos de grife, marcando neles o ritmo de “Vou Festejar”, num momento contagiante.
Era a prova definitiva de que a inovação do subúrbio começava a ganhar o país. O chamado “pagode pop” ou “pagode romântico” foi uma contrafação, surgida por imposição das gravadoras nos anos 1990, do som criado no Cacique e divulgado pela cantora carioca.
Fora da música, teve duas paixões: na política, Leonel Brizola, para quem gravou um jingle em 2000, quando o ex-governador se candidatou a prefeito do Rio. No futebol, o Botafogo de Futebol e Regatas. Seu jogo inesquecível foi a final do Campeonato Brasileiro de 1995, quando o clube de General Severiano sagrou-se campeão com gol de Túlio.
Um amor tão louco que levou a cantora a fazer algo raro na sua longa carreira de mais de 30 discos e cinco DVDs: gravar um samba boi-com-abóbora, “Esse é o Botafogo que eu Gosto”, de Dom Elias: “Esse é o Botafogo que eu gosto/ Esse é o Botafogo que eu mereço/ Tanto tempo esperando esse momento, meu Deus/ Deixa eu festejar que eu mereço”.
Beth sofreu com problemas na coluna durante toda a última década. Ao longo dos anos, mesmo com a mobilidade limitada, a sambista seguiu se apresentando em cadeira de rodas. Um das imagens de 2018 foi protagonizada pela cantora: vestida de amarelo-oxum e acompanhada do Fundo de Quintal, cantou o samba “Isaura”, de Rubens da Mangueira. Até aí nada demais, se Beth não estivesse deitada numa chaise longue. Não havia outro jeito. Ela ficou ao lado do samba até o fim.
ALVARO COSTA E SILVA