A volta às aulas presenciais na próxima segunda-feira (8) começará com desfalque nas escolas estaduais de São Paulo -a maior rede pública de ensino do país.
Até um quarto dos professores da rede pode continuar sem frequentar as cerca de 5.100 escolas paulistas por estar no grupo de risco para a Covid-19.
No ano passado, cerca de 43 mil docentes declararam ter problemas de saúde que impedem o retorno, segundo levantamento feito pela reportagem junto à secretaria de Educação do governo Doria (PSDB).
A rede estadual de ensino de São Paulo possui cerca de 166 mil professores ativos espalhados pelas 645 cidades paulistas.
Além de docentes com comorbidades como diabetes, pressão alta, doenças autoimunes, dentre outras, a pasta diz que 5.100 têm idades acima de 60 anos. Outras 1.700 professoras da rede estão grávidas.
Segundo o secretário de Educação de SP, Rossieli Soares, a pasta contratará professores temporários para substituir presencialmente aqueles que são do grupo de risco. No entanto, o número de contratações ainda não foi definido.
Ao menos 118 mil pessoas já se inscreveram na seleção para temporários. Em entrevista à reportagem, Rossieli não disse quantos profissionais serão contratados, mas um comunicado recente da pasta informava que até 10 mil temporários seriam convocados – número abaixo dos que permanecerão em trabalho remoto.
Pelo grau de excepcionalidade, os temporários poderão lecionar disciplinas diversas da formação original. Para isso, terão de comprovar que tiveram uma carga mínima de estudos na área pretendida.
A definição do total de contratados temporários também depende da organização definida pelas escolas sobre as atividades que serão desenvolvidas presencialmente.
Rossieli avalia, no entanto, que o número de docentes que não retornarão presencialmente seja menor, em torno de 18% a 19% do total. A diferença deve ocorrer porque a secretaria exigiu dos profissionais a apresentação de atestado médico que comprove o maior risco para o vírus.
“Uma coisa é a autodeclaração, outra é o médico dizer que a pessoa pertence ao grupo de risco. Precisamos do atestado para evitar fraudes”, diz Soares.
Professores que têm comorbidades relacionadas aos grupos de risco para o coronavírus relatam dificuldade para conseguir comprovar a necessidade de serem mantidos em atividades remotas.
Segundo eles, as escolas já exigiram que apresentassem atestado médico ao menos três vezes desde o início da pandemia -sempre com a regra de que o laudo estivesse atualizado.
Com obesidade, hipertensão e problemas respiratórios, Valeria Cristina Vieira, 48, diz ter apresentado três laudos médicos para ser dispensada das atividades presenciais na unidade em que leciona, a Escola Estadual Adolfo Cazais Monteiro, na zona sul da capital paulista.
“As doenças que nos colocam em grupo de risco são doenças crônicas, que não vão ser curadas em dois meses. Eu tomo remédio para hipertensão há mais de 20 anos. Sinto como se duvidassem de mim com toda essa exigência”, diz.
Priscila Macedo Gandra, 35, também enfrenta o mesmo problema para comprovar que é do grupo de risco. Ela tem obesidade e não consegue agendar consulta pelo SUS (Sistema Único de Saúde) porque as unidades de saúde estão com atendimento limitado por conta da pandemia.
“As UBS [Unidades Básicas de Saúde] estão limitando o agendamento de consulta exatamente por causa da pandemia. Eu não consigo passar com um médico só pra conseguir um atestado. Tenho medo de que me forcem a ir porque não consegui comprovar uma doença que visivelmente eu tenho”, conta a professora que dá aula de artes para cerca de 400 alunos em uma escola na zona norte da cidade de São Paulo.
Segundo o secretário, a pasta deu prazo de três semanas para que os professores apresentassem o atestado médico, o que ele considera ser suficiente.
Docentes que não são do grupo de risco, mas são responsáveis pelo cuidado de pessoas nessa situação também temem o retorno presencial. Pela regra da Secretaria Estadual de Educação, eles não poderão continuar em atividades remotas.
Jaiane Batista Estevam, 35, é mãe de um bebê de 1 ano que tem problemas cardíacos. Ela ainda amamenta o menino. Seu receio é de que possa ser contaminada e infectar o filho.
“Estou em isolamento total com ele desde março, porque não sei exatamente qual o risco de ele ser infectado, do risco de transmissão pela amamentação. Fico desesperada com a ideia de retornar para a escola”, contou.
Ela diz ter sido orientada pela direção da escola onde dá aula, na zona sul da capital paulista, a pedir licença com a justificativa de cuidar de um familiar. No entanto, esse tipo de afastamento acarreta em diminuição do salário.
“O que recebo já é pouco para nos manter, não tenho nenhuma reserva para segurar essa perda de salário. Fico nessa encruzilhada, volto a trabalhar e exponho meu filho ou fico em casa e perco renda.”
Segundo Rossieli, quem estiver em trabalho remoto terá de desenvolver atividades em conjunto com os colegas que estiverem em sala de aula. Aí está o maior desafio: fazer a sinergia acontecer para não sacrificar ainda mais a aprendizagem dos cerca de 3,5 milhões de estudantes.
Sabendo do gigante a ser enfrentado, a própria secretaria adiou o retorno presencial das aulas em uma semana para preparar os docentes para a nova realidade.
O plano de volta às salas de aula prevê que os professores remotos ficarão sob o encargo de alimentar as plataformas digitais das escolas com conteúdo para os estudantes e tirar as dúvidas daqueles que também não voltarão à escola.
Os estudantes que estão no grupo de risco para Covid-19 ou com receio do ensino presencial neste momento poderão continuar em casa. A frequência não obrigatória dos alunos só permanece enquanto a região em que estudam estiver na fase laranja do plano paulista de contenção da pandemia, a segunda mais restritiva. Por isso, a pasta diz que só saberá quantos alunos não retornarão após o início das aulas.
Outra função atribuída aos professores que trabalharão a distância é de que sejam responsáveis pelas burocracias, como o preenchimento de notas no sistema. Já os docentes em sala de aula farão o acolhimento dos estudantes e a cobrança da entrega de atividades, além do ensino presencial.
Para a especialista em formação docente Ângela Soligo, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, as aulas nos dois formatos vão exigir muita organização e coordenação para evitar nova sobrecarga aos professores.
“É preciso ter um planejamento muito bem definido de quantos alunos e professores estarão em sala, o que cada um vai fazer e como será essa convergência. Sem isso, os dois grupos de docentes vão ficar sobrecarregados.”
Antes mesmo do início do funcionamento das escolas, Rossieli ainda enfrenta grupos dissidentes de prefeitos que optaram por não cumprir o calendário. Em Santo Expedito, a 609 km da capital paulista, as aulas das redes municipal e estadual estão suspensas até 24 de abril por força de decreto municipal. “Acionaremos a prefeitura para ela seguir a nossa determinação”, diz Rossieli.
O secretário diz que o número de prefeitos resistentes ao retorno das aulas presenciais é pequeno. No ano passado, a reabertura das escolas foi travada pela falta de consenso com os municípios –até mesmo o prefeito Bruno Covas (PSDB), aliado de Doria, resistiu a autorizar a volta.
Problemas estruturais, atraso de reformas e até vandalismo também são entraves para a volta das atividades em algumas escolas. “Mas não passam de 20 unidades com esses problemas. As escolas nestas condições continuarão fechadas até que possam dar segurança para alunos, pais e professores”, afirma o secretário.
“O desafio é ‘limpar’ o campo dessa decisão da volta e discutir o que a gente precisa fazer para não comprometer ainda mais a aprendizagem”, acentua o secretário.