O setor passa por uma de suas fases de maior vitalidade das últimas décadas
Guilherme Lorandi tinha 26 anos quando a Gibiteria, onde ele trabalhava como vendedor-faz-tudo, fechou as portas, em 2018. Em vez de se desanimar com o fim da casa de gibis, vítima das agruras do mundo editorial, o rapaz saiu do roteiro. Criou a sua própria loja, no mesmo endereço.
Não foi fácil, mas a casa –que batizou de Monstra– sobreviveu. Deu tão certo que Lorandi inaugurou, no fim do ano passado, uma editora de mesmo nome. Seu primeiro lançamento, “Risca Faca”, de André Kitagawa, é uma das grandes publicações destes meses. Hoje, Lorandi tem 29 anos.
A história dele dá conta de como o mercado de HQs nacionais vive um momento que –como diz a expressão– não está no gibi. O setor passa por uma de suas fases de maior vitalidade das últimas décadas.
Contrariando as previsões pessimistas, surgiram novas lojas e editoras. Além da Monstra, a editora Brasa acaba de entrar no mercado, por exemplo. Veteranos que tinham se afastado do setor estão voltando aos poucos. A temática dos gibis tem se afiado também, tratando cada vez mais de assuntos como política, racismo, transfobia e pobreza.
“Risca Faca” é um excelente exemplo desse amadurecimento do mercado. O gibi marcou, de certa maneira, o retorno triunfante do veterano Kitagawa, de 48 anos. Ele estava afastado desde o lançamento de “Chapa Quente”, em 2006. Tinha feito alguns trabalhos em gibi, mas nada do porte dessa nova HQ, em que narra a história de populações marginalizadas em um centro urbano brasileiro.
Não há uma explicação que, sozinha, justifique esse momento. O processo de amadurecimento está em curso há talvez dez, 15 anos. Mas os frutos estão de repente vistosos, e bastante evidentes. “Do ponto de vista editorial, esse é o melhor momento dos quadrinhos nacionais em muito tempo”, diz Lorandi.
“Não dependemos mais de super-heróis e da Turma da Mônica. Temos edições de luxo, em capa dura, em papel bom. Sai gibi de tudo quanto é jeito, para todos os bolsos. Acho que é o momento de fazer a coisa acontecer, e a Monstra entra nisso.”
A superação do mercado do início dos anos 2000, tomado por super-heróis e pela Mônica, é uma ideia que diversas pessoas contaram a este repórter. Gerações anteriores de leitores ficavam “órfãs” quando cresciam, porque não havia um mercado de quadrinhos para adolescentes.
Isso mudou com o surgimento de editoras como a Conrad, que investiram no nicho de jovens e adultos -em especial, com a publicação de mangás, as populares revistas japonesas. Outras casas pioneiras foram a Devir e a Desiderata, que construíram pontes para os gibis mais maduros.
“Na minha geração, não havia continuidade na experiência da leitura de gibis”, diz Lobo, de 52 anos, fundador da recém-criada editora Brasa e autor do gibi “Lovistori”. Da geração de Kitagawa, ele é outro que tinha sumido do mercado e decidiu voltar agora, ao notar a guinada positiva dos últimos anos.
“Hoje, o leitor pode nascer, crescer e morrer lendo quadrinhos, e essa maturidade está abrindo as portas para artistas produzirem gibis sobre a gente, sobre o nosso país, sobre a nossa vida”, diz.
O bom momento dos gibis não depende só de um público consolidado. Outro ponto importante é o avanço tecnológico. A geração de Kitagawa e Lobo trabalhava, no início dos anos 2000, num mundo pautado por processos industriais complexos e grandes tiragens.
A linha de montagem foi simplificada pela internet e por novas ferramentas. Um quadrinista consegue hoje, sozinho, “ter a ideia, desenhar e levar para a gráfica”, diz Lobo. Novos equipamentos permitem, também, tiragens menores –e, portanto, de investimento menor. Artistas decidem produzir projetos mais arriscados, em que a venda em massa não é a única prioridade. Com isso, exploram novos temas.
Segundo Paulo Ramos, pesquisador especializado em quadrinhos, o retorno dos artistas veteranos ao mercado existe, mas ainda é tímido. Além de Kitagawa e Lobo, ele lembra Gustavo Duarte, que vinha desenhando para o mercado americano e volta agora ao Brasil com uma HQ sobre Elis Regina.
“Há uma geração influenciada por mangás e com uma familiaridade maior com produções nacionais em formato livro, sejam independentes, sejam lançadas por editoras”, diz Ramos. “A quantidade de publicações tem sido acompanhada pela qualidade delas, tanto de conteúdo quanto de tratamento editorial. As obras com capa dura, inclusive nacionais, têm se tornado tendência.”
Ramos menciona, também, outro avanço fundamental vivido nestes últimos anos –as oportunidades de financiamento. Há editais públicos, como o Programa de Ação Cultural, o Proac, que bancou tanto o “Risca Faca” da editora Monstra quanto o “Lovistori” da Brasa.
Há também uma série de sites de financiamento coletivo, como o Catarse, que “têm permitido uma venda direta da obra que, ao mesmo tempo, viabiliza financeiramente a publicação dela”, afirma. “Os editais e o sistema de arrecadação coletiva têm sido as vigas mestras desse processo.”
Segundo o pesquisador, o amadurecimento do mercado vem trazendo novos assuntos para as HQs. “O tema que mais ganhou projeção nessa década foi o relacionado aos negros”, afirma.
“Autores negros e temáticas relacionadas ao racismo e à histórica exclusão social deles compuseram obras recentes importantes.” Ramos lembra os gibis premiados “Angola Janga” e “Cumbe”, de Marcelo D’Salete, e “Jeremias: Pele” e “Jeremias: Alma”, da dupla Jefferson Costa e Rafael Calça.
“Os quadrinhos estão mais consolidados e não carregam certos estigmas do passado, como o de ser uma sub-arte voltada a crianças e adultos infantilizados”, diz Kitagawa, de “Risca Faca”. “Hoje, é uma arte mais respeitável e abrange uma gama muito variada de gêneros e públicos.”
O porém, diz o quadrinista, é que a vitalização do mercado das HQs nacionais significa também uma maior competição entre os autores. Uma daquelas coisas ruins que, no final das contas, são boas também. “Há muitos artistas de alto nível aparecendo, e é mais difícil se destacar”, afirma.