A semana começou triste. Pela ruela que separa os barracões, as pessoas olhavam a paisagem de destruição. Tijolos soltos, telhas quebradas, janelas arrebentadas, ferros retorcidos. Dezessete fábricas funcionavam no histórico prédio da Fábrica de Tecidos Carioba, destruído por um incêndio na noite de sábado para domingo. Tudo se transformou em um amontoado de entulho.
Agentes da Polícia Científica caminhavam pelos destroços. O guindaste da companhia distribuidora de energia removia a fiação. Guardas municipais tentavam conter a aproximação de curiosos.
Representantes do sindicato dos trabalhadores do setor têxtil também passaram a manhã de segunda no complexo de fábricas. Segundo o diretor Luís Carlos Nascimento, pelo menos meia centena de operários perderam o próprio ganha-pão.
Ao sindicato, resta aguardar o resultado da perícia técnica para que se possa ter noção das causas do incêndio e apurar responsabilidades.
Os empresários – que pagavam aluguel dos espaços à prefeitura – perderam tudo. Os teares e urdideiras viraram sucata. Nada tinha a cobertura de uma seguradora. Os empreendimentos funcionavam em um imóvel, acanhado, desestruturado, improvisado, desprovido até de equipamentos contra incêndio. Eram fábricas pequenas, na essência. Se lutava muito para sobreviver.
Mas o fogo não acabou apenas com os negócios. Acabou também com um patrimônio histórico importantíssimo. Naquele prédio dividido em empresas pequenas funcionou, a partir do final do século 19, aquela que foi a primeira tecelagem de Americana (leia abaixo). Lá, entre aquelas paredes chamuscadas, trabalharam gerações e gerações de muitas famílias.
EM 2017, SECRETÁRIO PLANEJAVA MUSEU NO LOCAL
O prédio onde funcionou a primeira tecelagem de Americana era candidato a sediar um museu. O secretário municipal de Cultura, Fernando Giuliani, ainda em 2017, afirmou que a planejada revitalização da vila operária previa a instalação de um espaço cultural sobre a história da indústria têxtil local.
Também se falava na transformação dos últimos prédios históricos da vila em centros culturais e gastronômicos.
É certo que o incêndio prorroga, por mais tempo, os projetos de revitalização. Agora, segundo a própria prefeitura, a administração só busca no momento soluções para a reforma, a retomada da produção das fábricas e a garantia dos empregos.
UMA HISTÓRIA QUE SE CONFUNDE À DA VILA
Nancy Pontes, uma senhora de 55 anos, mantinha no complexo fabril uma indústria que produzia tecidos para lençóis. O marido dela, Milton, instalou a fábrica por ali há quase quatro décadas.
Os 40 teares Ribeiro – com pelo menos três décadas de uso – tomavam mais de mil metros quadrados do antigo prédio histórico. E o casal garantia trabalho e renda para operários que mantinham 40 famílias.
NANCY | Produzia tecidos em fábrica que o marido instalou há cerca de 40 anos
Na manhã desta segunda-feira, Nancy, com os olhos tomados de lágrima, contou à reportagem que a fábrica e a própria vila operária representavam sua própria história de vida.
“Meus pais José Elias e Aurora trabalharam aqui neste prédio. E tios meus, todos ligados ao trabalho no setor têxtil, moravam no bairro: Maria, Ernesto, Ana… Carioba era o lar da família toda…”, disse.
O FIM DO ESCRITÓRIO DO COMENDADOR
Marcelo Bragagnoli também mantinha no complexo uma tecelagem de 750 metros quadrados. Havia 20 funcionários, 26 teares. Fábrica que funcionava havia 17 anos.
E ele próprio tinha, na empresa, um prazer pessoal. A sua ficava no predinho assobradado onde, no começo do século passado, funcionou o escritório do comendador Franz Müller, principal administrador da primeira tecelagem da cidade, que a transformou em uma potência.
BRAGAGNOLI | Tecelagem no prédio onde funcionou o escritório de Franz Müller
O fogo devastou tudo na noite de sábado. Marcelo, estava triste de saber que sua fábrica não vai mais abrir as portas. Mas a dor foi maior, confessa, foi se encontrar com operários depois do final de semana trágico.
“Muita gente chorando. Pessoas que perderam o trabalho, perderam o sustento. Vi cenas que vão ficar pra sempre na minha memória”, disse.
O PONTO DE PARTIDA QUE TRANSFORMOU AMERICANA EM POLO TÊXTIL
A antiga Fábrica de Tecidos Carioba, uma das primeiras tecelagens do Estado de São Paulo, foi fundada em 1875 pelo engenheiro confederado William Pultney Ralston, que se associou aos irmãos fazendeiros Antonio e Augusto de Souza Queiroz, então donos da Fazenda de Salto Grande.
Nove anos anos mais tarde, em 1884, a fábrica foi comprada pelos irmãos ingleses Clement e George Willmot, que a ampliaram e também iniciaram a construção da vila operária ao redor.
Em 1896, depois da abolição da escravatura (1888), os ingleses, que também eram os novos donos da fazenda, estavam mergulhados em dívidas e faliram. A fábrica fechou as portas por cinco anos, e acabou leiloada em 1901.
A tecelagem foi comprada pelo alemão Franz Müller. Encantando com o lugar (na confluência do Ribeirão Quilombo com o Rio Piracicaba), ele mandou erguer casas no estilo alemão para todos os seus filhos. A família toda estava fixada em Carioba em 1902.
Sob a administração dos Müller, a fábrica foi recuperada financeiramente e a vila operária ganhou investimentos. Os operários passaram a morar em residências dignas, estruturadas, com acesso a asfalto, energia, serviços e opções de lazer.
Carioba se transformou em uma referência de modernidade. E o alemão e seus descendentes foram os grandes responsáveis por transformar Americana em um polo têxtil.
Os próprios operários foram incentivados a montar teares em seus quintais. Eles prestavam serviços à fábrica de Carioba. Pequenas tecelagens brotavam em cada canto da cidade.
CARIOBA | Trabalhos nesta segunda após o incêndio na vila que se formou em torno da fábrica
Mas os Müller tiveram de abrir mão do controle da administração da fábrica na época da II Guerra Mundial. Por determinação do governo federal, alemães, japoneses e italianos (membros do “Eixo”) não podiam mais estar, pelo menos temporariamente, à frente de empreendimentos.
Carioba, então, passou a ser administrada pela família Adballa. E a fábrica entrou em decadência. Nos anos 70, a indústria não suportou a concorrência de conglomerados têxteis gigantescos que aportavam por aqui e acabou fechando as portas. Era 1976.
No começo dos anos 80, a charmosa vila operária, que tinha mais de 300 casas, foi demolida. Os próprios operários tiveram autorização para levar os tijolos e usá-los para construir suas casas na cidade.
A antiga fábrica e os barracões anexos com o tempo foram divididos em pequenos negócios, ainda basicamente ligados à produção de tecidos.