A partir de sexta-feira (3), quando a TV Globo passa a transmitir os dez capítulos da série “Assédio”, sobre a vida do médico Roger Abdelmassih, condenado a mais de 270 anos de prisão por acusações em 52 estupros e quatro tentativas contra 39 mulheres, uma de suas vítimas, moradora em Sumaré, literalmente se verá na trama.
Teresa Cordiolli, escritora, bacharel em Direito, voluntária de causas sociais e militante dos direitos de mulheres, crianças e idosos, foi uma das inspiradoras da série por ter sido, ainda menor de idade, talvez uma das primeiras vítimas do médico, que até então era respeitado por boa parte da alta sociedade brasileira e com conceito internacional na reprodução humana assistida.
Antes da entrevista exclusiva ao TODODIA, Teresa, que inspirou a personagem “Helena” na minissérie, se apresenta. “Para que entendam, quem não conhece a minha causa: eu fui violentada por aproximadamente dez dias em um leito hospitalar, sob ameaças de morte. Tentei por todos os meios denunciá-lo por longos anos, mas não era ouvida. Eu ligava em todos os programas de TV em que Roger Abdelmassih se apresentava, mas ele era o Rei, se intitulava deus e ninguém me ouvia”, relata.
Segundo Teresa, que este ano completará 50 anos morando em Sumaré, agora a série conta em forma de ficção como ele atuava Na obra, ela será representada pela personagem Irene – que deve aparecer desde o primeiro capítulo. Confira a seguir os principais trechos da conversa:
TODO DIA – A senhora acredita ter sido uma das primeiras vítimas do médico?Teresa Cordiolli – A primeira vítima? Não posso acreditar ser a primeira porque o modus operandi dele era de um profissional viciado ou doente por sexo violento. Esse perfil de homem leva a ver a mulher como seu objeto de prazer e satisfação.
Ele ainda não era famosa na época ou já era?
Na época, ele era recém-formado, ainda fazendo residência em hospital famoso em Campinas. Eu era menor de idade e fui internada devido a cólicas renais. Fui violentada várias vezes por ele dentro do hospital. Eu fugi do hospital com a ajuda de uma amiga, pois temia ser morta por ele. Corremos pelas ruas do centro de Campinas até a rodoviária para salvar a minha vida e creio que também a da minha amiga, pois o médico abusador me deu “alta” e insistia em me levar para casa. Eu disse que iria com minha amiga e ao ele ouvir que ela não tinha carro, insistiu que daria carona. Foi tempo de ele sair do quarto dizendo que ia pegar o carro e falei para minha amiga: ‘vamos sair correndo daqui, agora’. Acho que não estaríamos vivas se não tivéssemos feito isso.
Quando você o denunciou?
Oficialmente, eu o denunciei em 2008, quando a secretaria dele, que também tinha sido abusada por ele, o denunciou e essa informação chegou nas mídias, abrindo portas para que centenas de mulheres viessem a denunciá-lo também. Tentei denunciá-lo antes e por dezenas de vezes, mas ninguém acreditou em mim.
Ao denunciar, você tinha ideia que o País conheceria tantos outros crimes dele? Sua coragem incentivou outras mulheres?
Olha, posso garantir que tinha certeza que o País conheceria outros crimes, sim. O modus operandi dele levava a crer nisso. Era atitude de um estuprador profissional, se é que existe isso…
Que reflexos o episódio trouxe para sua vida familiar e pessoal?
O maior trauma que ficou foi resistência de não ir a médicos. Eu vivo desmarcando consultas, não faço acompanhamento médico, mesmo tendo 13 intervenções cardíacas. Na família, o marido e filhos só souberam 25 anos depois e passaram a me ajudar nas denúncias. A repercussão, a exposição e a vitória que tivemos nessa causa ajudaram, sim, a criar um grupo no Facebook com muita credibilidade junto às vítimas e ao público em geral. E estamos trabalhando na formação de uma associação para ampliar os trabalhos.
O que você diria para outras mulheres que eventualmente possam estar sofrendo ou sofreram algum abuso de ditos profissionais que têm uma certa “liberdade” em relação a lidar com o corpo e (ou) com a mente da mulher?
Eu digo: “DENUNCIEM”! Hoje ficou mais fácil para a mulher denunciar, sua palavra basta. Nós obtivemos essa vitória através da Lei Maria da Penha, que assegura à mulher todos os direitos fundamentais da pessoa humana, garantindo-lhe as oportunidades e facilidades para viver sem violência. E existem grupos de ajuda que vêm para orientá-las, apoiá-las, acompanhando-as e, se necessário, oferecendo ajudas psicológicas e jurídicas gratuitamente, sempre através de voluntários.
O que você pode falar sobre como o seu episódio, lá dos anos 70, transformou sua vida? Você coordena hoje um grupo em rede social voltado a proteger não apenas mulheres, mas todas as pessoas que eventualmente possam estar sendo vítimas de abusos e não sabem a quem recorrer. Como isso funciona?
Esse episódio transformou e muito a minha vida. Perdi minha juventude, carregando esse trauma. Na época eu desconfiava de todos os homens que de mim se aproximassem, eu pensava: “se UM MÉDICO FEZ, porque um simples mortal não o faria”? Tenho o grupo na rede social, Facebook, e estou formando uma associação para poder representar ainda mais as vítimas aqui da nossa região. Esse é um trabalho feito com muita seriedade e respeito. Nosso grupo tem o intuito de ouvir e orientar as supostas vítimas, verificando a procedência da denúncia, orientando o caminho a ser seguido, se necessário acompanhar à Delegacia para ser feito BO (Boletim de Ocorrência) e ao Ministério Público. Quando a vítima é de fora, pesquisamos as Delegacias da Mulher mais próxima da cidade dela e do MP que deve procurar. Costumamos ligar antes e marcar horário para elas serem atendidas.Esteja à vontade para expor o que achar necessário, nos fale de sua formação profissional, onde nasceu, quando veio para Sumaré e algo mais que ache relevante… Eu nasci e cresci na roça, no município de Itajobi, região de Araraquara, Catanduva. Depois morei em outra fazenda no município de Itápolis, terra do meu coração. Cheguei em Sumaré no início de 1969, esse ano faz 50 anos que moramos aqui. Trabalhei por anos no Bradesco, casei, tive 3 filhos, 4 netos. Em 1999 entrei na faculdade, hoje sou formada em Direito. Sou viúva, sou mãe, sou pai, sou avó, sou poetisa, sou voluntária. Hoje sou EU, com muito mais coragem e força para lutar pelos mais necessitados, pelas minorias, e pelas vítimas de todo tipo de acidentes. Seja no âmbito familiar, social, sejam mulheres, idosos ou crianças.
Médico está condenado, mas em casa
O ex-médico Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana assistida, foi condenado por 56 condutas de abuso de pacientes mulheres caracterizadas como estupro. Ele começou a ser acusado, em 2009, de violentar suas pacientes enquanto estavam sob efeitos de sedativos.
Abdelmassih foi condenado a 278 anos de prisão por 52 estupros e quatro tentativas de estupro a 39 mulheres. Após mais de três anos foragido, ele foi preso no Paraguai, em 19 de agosto de 2014.Em setembro de 2017, o STF ( Supremo Tribunal Federal) concedeu decisão favorável a Roger Abdelmassih para que ele cumpra a pena em prisão domiciliar.
Roger Abdelmassih, quando retornou ao Brasil em 2014, depois de capturado no Paraguai| Agência Brasil