sexta-feira, 19 abril 2024

Lavrador cria biblioteca comunitária ao lado de horta em Americana

Quem chega à horta, no Parque Universitário, em Americana, dá de cara com a estante improvisada com caixotes de feira. Ali, a uns três metros do balcãozinho lotado de pés de alface, mandioca e cachos de banana, ficam expostas centenas de livros usados. Pelo menos 500.  Tudo à disposição de clientes que escolhem um título, levam para ler, devolvem quando podem, e não pagam nada.

O acervo da “hortateca” se renova, com as doações que chegam sem parar.

O projeto, que existe há quase uma década, é do lavrador Elias Francisco de Moraes, de 47 anos. O cidadão – casado com a Patrícia, pai de quatro filhos e avô de um netinho – mora no Cordenounsi, e já cultivou hortas em vários bairros de Americana.

Ele se mudou para o Parque Universitário há sete meses porque não tinha mais dinheiro para pagar aluguel em terrenos particulares. Encontrou um cantinho cedido em gleba da prefeitura. Bem ali, na última quadra da Rua Rio Claro, esquina com a Avenida Artur Nogueira, pertinho da saída para a Estrada de Cillo.

Quando se mudou para o bairro novo, ele montou o barraco com velhas telhas de cimento amianto. Improvisou um fogão no cupinzeiro enorme, arrumou espaço para o colchão, as panelas, talheres, roupas. E levou a hortoteca na bagagem. Ele passa o dia por ali. Dorme às vezes na banca para cuidar do espaço.

E, quando o Elias precisa sair, deixa o bilhete anotadinho na agenda, avisando que o cliente pode se servir de verduras e legumes, e passar mais tarde para pagar. E a clientela fiel volta e acerta as contas. A relação com o cliente, de confiança pura, é de emocionar quem chega para visitar.

“Ah, tudo começou porque eu já adorava ler. Trazia meus livros na horta para passar o tempo. Aí comecei a conversar com os clientes sobre os livros, comecei a emprestar e receber doações”, diz. ‘O acervo foi crescendo”.

O homem adora uma prosa e desembesta a falar. Conta que a leitura o fez “entender o mundo, compreender as pessoas”. E no começo, esnoba, vasculhava livros de filosofia e história. E aí leu de tudo um pouco.

“NÃO DÁ PRA ACREDITAR QUE É DE GRAÇA”

A dona Regina Braga Carvalho, a filha Ariela e o neto Arthur chegavam de Nova Odessa no começo da tarde de quinta-feira. Pegaram o acesso para o Parque Universitário, no fim da Rodolfo Kivitz, e se impressionaram com a biblioteca montada ali, na esquina da horta. Ah, o Elias não estava lá ainda.

Se ajeitaram, passaram uma hora folheando os livros, e separaram uns títulos para levar. A Ariela, fissurada pela leitura, fez sua pilha com obras de Clarice Lispector, Gracialiano Ramos, José Mauro de Vasconcelos…

Ficaram na banca até o Elias voltar da rua. Mas não tinham pressa de ir embora. Ficaram ouvindo as histórias que o homem contava à reportagem. Causos que rendem um livro, literalmente.

“Títulos muitos livros bons! Autores consagrados. Não dá pra acreditar que é de graça”, falou a moça.  Ela colocou uns dez títulos na bolsa. E já avisou que virou cliente da hortateca.

De romance sério a livro técnico

O acervo tem de romances a livros técnicos. Há clássicos da literatura nacional – daqueles que são leitura obrigatória para o vestibular – a títulos da cultura espírita. Há Bíblias, livros para colorir, atlas geográficos, enciclopédias. E o lavrador Elias, da humildade dos pés no chão e do rosto queimado do sol, fala que o governo peca por não incentivar, nestes tempos de pandemia, que as pessoas de quarentena passem o dia lendo. “A leitura é lazer saudável para a quarentena”, resume. Ah, ele nunca pensou em cobrar pelos empréstimos. “Leitura é conhecimento. E conhecimento não pode ser vendido, tem de ser compartilhado”, ensina. O único controle que existe são as fichas com os nomes de uns 300 leitores assíduos, guardados em uma caixa de sapato encapada com papel celofane. Só para não perder o contato. Só para que as amizades durem para sempre.

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