A pandemia está provocando transformações radicais na configuração das migrações internacionais. Com o aumento do controle das fronteiras, as massas miseráveis estão proibidas de buscar refúgio em outros países. E a situação ficou complicada até para quem já se mudou.
A oferta de trabalho na quarentena despencou, e os migrantes seguem confinados, sem renda e sem esperança, em locais onde os riscos de contaminação são ainda maiores.
O quadro é revelado por um estudo de pesquisadores da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que, em parceria com mestre da Universidade de Cardiff (Reino Unido), traçaram detalhes do fenômeno no Brasil e – no caso -, especificamente na região de Campinas.
Segundo Rosana Baeninger, professora do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da Unicamp e pesquisadora do Nepo (Núcleo de Estudos de População) Elza Berquó, os imigrantes e refugiados já são grupos historicamente vulneráveis e a pandemia agravou a situação.
A professora lembra que o imigrantes seguem vivendo e trabalhando em locais insalubres, sem o menor respeito ao distanciamento social para controlar do coronavírus. E entre os exemplos citados por ela estão as confecções, tão comuns em fundos de quintal.
Outro ponto observado é o agravamento do racismo, da discriminação e da xenofobia, em um contexto pandêmico no qual a causa dos problemas é atribuída a um “vírus estrangeiro”.
A pandemia, diz, passou a ser entendida como “causada pelo vírus chinês”. O estigma reforça o preconceito contra o que vem de fora.
SEM DIREITOS
O professor Luís Vedovato, da FCA (Faculdade de Ciências Aplicadas) da Unicamp, salienta que imigrantes e refugiados têm experienciado a dificuldade no acesso a direitos (como o auxílio emergencial, no caso do Brasil). O auxílio é previsto para aqueles que possuem CPF (Cadastro de Pessoa Física), requisito que restringe o seu acesso: faltam, documentos para os imigrantes. O cenário de vulnerabilidade pode piorar ainda mais.
Com a diminuição de empregos e impossibilidade de trabalhos informais nas ruas, os imigrantes empobrecem e são impedidos, por exemplo, de enviar dinheiro aos parentes, prática comum entre a população migrante.
ATENDIMENTO
O estudo ressalta a importância de que os municípios possuam um sistema de atendimento aos imigrantes e refugiados. “Embora as consequências da pandemia tenham a ver com o cenário mundial, cada município tem de assumir políticas para essas populações”, afirma a professora Rosana.
ROSANA | Pesquisadora (Foto: Antônio Scarpinetti | Unicamp)
A pesquisadora ressalta que há países que têm seu PIB (Produto Interno Bruto) composto em grande parte pelas remessas financeiras daqueles que emigraram, como Bangladesh, Haiti, Honduras e Guatemala. Todos já sofrem grande impacto com a pandemia. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) estimou uma diminuição das remessas em 20%.
SEM MÁSCARA, SEM AMIGOS, SEM AJUDA
Quem passeia pela região da Vila Bertini, em Americana, nota bolivianos em todo canto. Nas praças, nas ruas, nos mercados. Os imigrantes começaram a chegar na década passada, à procura de trabalho em confecções e pequenas fábricas. E eles fazem parte do grupo de pessoas que – como revelam os pesquisadores da Unicamp – são afetadas demais pela pandemia.
Estão longe de casa, sem notícias da família, lutando pela sobrevivência em cômodos apertados ou morando em repúblicas.
São personagens de semblante sofrido. E que falam com a voz embargada quando lembram do lar.
Gente como o costureiro Jose Condi, de 29 anos, que chegou em Americana há oito meses. Ele conta que trouxe a mulher e os dois filhos e as coisas iam bem, até começar a pandemia.
Diz que a situação ficou muito complicada com a queda das vendas. Para sobreviver, montou a própria confecção, trabalha sozinho, dá um duro danado para pagar as contas.
A VIDA NÃO ESTÁ FÁCIL
Ele não tem dinheiro para voltar, nem tem notícias da família que ficou por lá. Como se separou da mulher, José passa os dias cuidando dos filhos, dentro de casa. E quando pode andar pelas ruas do bairro com a filhinha Kailin, de 2 anos e 8 meses. Não usa máscara facial. Não tem medo de pegar o coronavírus.
“Não converso com ninguém, não tenho amigos. Até os negócios da confecção são pelo WhatsApp”, diz.
José é exemplo de como vivem os imigrantes na pandemia: solitários, desamparados, sem muita noção dos riscos de contaminação aos quais estão sujeitos.
POBREZA IMPULSIONA A MIGRAÇÃO
A pobreza, como explica o professor Shailen Nandy, da Universidade de Cardiff, é um dos fatores que impulsiona as migrações, incidindo sobre o desejo e a necessidade de migrar.
“A crescente desigualdade econômica, política e social está alimentando a instabilidade em muitos países, e é natural que as pessoas queiram fugir para um lugar seguro, onde possam viver e trabalhar em paz”, diz.
Shailen, cujos estudos focam-se na abordagem consensual da pobreza, elucida que esse enfoque leva em conta não só a renda, trazendo um olhar mais amplo para a pobreza que abrange, por exemplo, o acesso a serviços de saúde e à alimentação. A importância da metodologia, nesse momento de pandemia, torna-se evidente. “A pandemia mostrou que ignorar outros fatores, como acesso a serviços básicos e padrão geral de vida, é problemático; o que os planejadores precisam são medidas socialmente realistas da pobreza”, diz.
O professor lembra a “demonização” de migrantes e refugiados por políticos e na imprensa britânica, por exemplo. Os discursos associam essa população às causas de problemas como a saturação de serviços básicos. O irônico é que os migrantes são jovens, mais propensos a trabalhar e pagar impostos e menos dependentes dos serviços públicos.
Traçando uma ligação com o Brasil, onde ele também identifica a hostilidade e a agressão a imigrantes venezuelanos e haitianos, o professor lamenta que isso ocorra em um país fundado pela migração.
SAIBA MAIS
A parceria entre a Unicamp e a Universidade de Cardif começou em 2018, com a aproximação de diversas áreas do conhecimento. No começo de 2020 teve início uma pesquisa com o objetivo de avaliar a pobreza no Brasil. Resultados preliminares estarão no livro Migrações Internacionais e a pandemia de Covid-19. Apesar de ainda estar em andamento, o estudo indica quatro principais vetores de reprodução da pobreza multidimensional: renda e classe, racismo, violência e gênero. O estudo sobre os efeitos da pandemia no fluxo migratório internacional será disponibilizado gratuitamente, on-line, quando estiver concluído.
Com Pedro Heiderich