sexta-feira, 26 abril 2024

Para morrer, espaço nas igrejas valia ouro

Antes dos cemitérios, locais sagrados eram disputados em busca do paraíso

Visão geral do Cemitério da Saudade, em Americana (Foto: Prefeitura de Americana/Divulgação)

Houve um tempo em que, na crença de garantir “um pedacinho do céu”, era preciso comprar um pedacinho da terra. Mas não qualquer um: o espaço nas igrejas para ser enterrado e, em tese, manter a alma mais próxima do paraíso, era o tradicional até o século 19, antes da existência dos cemitérios como conhecemos hoje. A localização da sepultura dentro da igreja variava de preço. Quanto mais perto do altar ou nos átrios, mais cara. A cifra aumentava onde se concentravam as orações, que teriam poder de elevar a alma para longe do inferno e purgatório.

Só que, no plano terreno, esses corpos eram enterrados apenas envoltos por um tecido, sob algumas pás de cal e terra, sem vedação alguma. O cheiro da decomposição se misturava com o dos incensos, o que era visto como normal até aquela situação ser relacionada a problemas de saúde. Foi quando o Estado entrou no meio de um procedimento que era alçada exclusiva da igreja e começou a separar os enterros das instituições religiosas. Começou a implantar os cemitérios públicos, de forma que mesmo os que não tinham posses poderiam ter onde repousar os restos mortais.
O costume é resgatado pelo historiador João Paulo Berto, do Centro de Memória da Unicamp. “O Brasil teve colonização portuguesa de base católica, forte para moldar a sociedade de forma geral. É uma importância que permanece até os dias de hoje, e determina como lidamos com a morte. A ideia de vida eterna com Deus e os santos era a questão mais importante, com a vida terrena como preparatória para o júbilo. Portanto, a cautela para não ir a lugares que não o paraíso. O sepultamento em local sacro era visto como uma forma de abrandar penas e evitar o inferno e purgatório”.
Mas a mudança de tradição não foi tão tranquila assim. “Não se quebra um costume medieval da noite para o dia, e os mais ricos insistiam em comprar espaço para serem enterrados nas igrejas, o que levou à aplicação de multas pelo Estado”, conta, num procedimento então regulado pela constituição imperial de 1824.
DISTANCIAMENTO
A questão sanitária contribuiu para um distanciamento dos mortos que persiste. Até os anos 1950 e 1960 era comum que famílias velassem entes na própria casa. Mas, nesta época, os cemitérios já eram construídos nas margens das cidades. Locais que, com o passar do tempo, se tornaram áreas centrais.
“Esse distanciamento com a morte é construído desde o século 19, a ponto das pessoas temerem o morto e tê-lo muito distante. Alguns desses discursos se iniciaram com a teoria das contaminações dos enterrados em campas dentro das igrejas. A organização dessa prática fora dos templos religiosos também teve a ver com a organização das cidades, colocando-se os corpos em territórios o mais distante possível do núcleo urbano. Além do cheiro, o líquido que emanavam poderia contaminar lençóis freáticos”.
DE VOLTA À IGREJA
Poucas autoridades tiveram aval para serem enterradas em igrejas após as mudanças, caso de influentes religiosos ou políticos. Mas, aos poucos, os cemitérios se tornam espaços da manifestação da religiosidade, com símbolos que reafirmam o desejo e crença de ir para um bom lugar no post-mortem, a exemplo da construção de capelinhas enquanto protótipos da igreja.

Berto salienta que essa solução artística foi bastante usada não só na representação dos tempos, mas também dos santos em anjos, o que levou à formação e crescimento de uma verdadeira indústria da arte, com grandes artistas e marmoristas produzindo peças e entalhes numa ostentação que criava uma diferenciação, agora no lugar comum dos mortos. “Dentro dos cemitérios foi reproduzida a separação política, econômica e social, que percebemos das áreas mais simples às mais abastadas”, declara.

ENTRE ANÔNIMOS E FAMOSOS, A HISTÓRIA DOS CEMITÉRIOS COMO ESPAÇO DE CULTURA

Reconhecendo a quantidade de anônimos em meio às personalidades enterradas, os Historiadores Independentes de Carioba (HIC) também referenciam as pessoas que sequer têm uma lápide ou nome e data registrados em sua sepultura. Idealizadores e organizadores de roteiros históricos, os quatro historiadores reunidos desde 2016 também se adaptaram à pandemia e, neste ano, desenvolveram o trabalho de forma virtual no resgate histórico de personagens enterrados em Americana, além da própria estrutura do cemitério.

O grupo é formado por Elizabete Carla Guedes, Gabriela Simonetti Trevisan, Jefferson Luis Bocardi e Mariana Spaulucci Feltrin, todos historiadores, que se uniram de forma autônoma para a pesquisa histórica e promoção de atividades culturais e educativas locais.

De acordo com eles, o projeto turístico foi elaborado a partir de pesquisas historiográficas para contemplar o cemitério como espaço de memória. Em 2019, o roteiro “Sepulturas que Falam” abordava temas e personagens históricos que contribuíram para a formação do município e sua emancipação política, como os imigrantes e a mão de obra escravizada trazida para a região, além de personagens historicamente desconhecidos. O roteiro “Mulheres Americanenses Para Além das Flores”, dedicado às protagonistas do fazer histórico da cidade, foi interrompido pela pandemia, com apenas uma visita presencial.

Antes da pandemia, as visitas guiadas ocorriam presencialmente no Cemitério da Saudade, onde os visitantes caminhavam em meio aos túmulos de sujeitos históricos (des)conhecidos, observando características socioculturais e arquitetônicas. A renda para manutenção dos trabalhos era por meio de pagamento de valor voluntário após participação no evento cultural. Com o encerramento das atividades, o grupo foi contemplado pelo edital da Lei Aldir Blanc para a elaboração de um roteiro virtual (disponível em: https://sites.google.com/view/historiadorescarioba/).

ABAIXO OS TABUS
“Para nós, pesquisadores e historiadores, o cemitério é visto como um espaço de memória, de patrimônios históricos, artísticos e culturais, além de um museu a céu aberto, se levarmos em consideração as disposições e atribuições de um museu”, afirmam, sobre um trabalho que vai além da pesquisa, com catalogação e comunicação. “Infelizmente a morte nos dias atuais é tida como tabu, sendo assim, muitas pessoas ainda têm medo de caminhar pelo cemitério, o que deixa o espaço aberto a vandalismo e depredação. No entanto, o objetivo dos Roteiros Históricos é despertar o olhar para a riqueza e importância desses patrimônios para a população americanense, trazendo outras narrativas históricas. Escolhemos este espaço para mostrar que o cemitério também é lugar de memória coletiva. Portanto, ocupando e nos apropriando, para além da valorização do patrimônio cultural da cidade, trazermos a importância da preservação desses bens que, no caso do Cemitério da Saudade, pode-se dizer que estão inseridos em bens materiais e imateriais do município, para além do contexto da historiografia regional”.

Cemitério em Santa Bárbara d’Oeste (Foto: Divulgação)

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