De cabelos raspados, já se desvencilhando do terno azul-marinho de ombros largos, Miguel Falabella descansa do personagem. “Ai, que frio na cabeça”, brinca, sobre a falta das madeixas loiras, que ele experimenta pela primeira vez. O couro cabeludo liso é parte do visual de Oliver Warbucks, personagem do musical “Annie”, que agora chega a São Paulo, no Teatro Santander, em montagem dirigida por Falabella.
Há algum tempo ele almeja encenar aqui o espetáculo, que assistiu pela primeira vez em Londres, na juventude.
Tinha ideia de fazer de Annie, a garotinha que foge do orfanato por acreditar que seus pais ainda estejam vivos, uma menina de rua, com ares brasileiros. Também pensava em usar nos cenários e nos figurinos uma padronagem criada pelo grafiteiro Kobra.
Mas não teve autorização dos detentores dos direitos do musical para fazer adaptações. “Queria fazer um ‘Annie’ mais lúdico, menos americano, mas não pude. Eles exigem um padrão”, diz Falabella, que costuma colocar elementos nacionais em suas versões de clássicos estrangeiros.
Em “O Homem de La Mancha”, musical sobre Miguel de Cervantes e seu “Dom Quixote”, o diretor remeteu à loucura utilizando-se da obra de Arthur Bispo do Rosário, que sofria de esquizofrenia.
Agora, diz ele, faz uma encenação mais enrijecida, “um clássico de maneira clássica, sem transgressões”. “Isso [transgredir] é que me dá tesão. Estou velho demais para ser copista. Uma coisa eu já resolvi, quando não puder ser diferente, não faço mais.”
Mas Falabella tem uma relação afetiva com o musical e com as suas canções. E, assim como o seu personagem, derrete-se por Annie.
Warbucks é o clichê do sonho americano, um homem de origem pobre que se fez bilionário. Rígido, acaba amolecido pela garotinha órfã.
Também reflete a política e a economia americana dos anos 1930, em especial a visão de direita do quadrinista Harold Gray, criador da história, publicada nas tirinhas “Little Orphan Annie” no nova-iorquino Daily News.
ADAPTAÇÃO
A adaptação musical estreou na Broadway em 1977, com música e letras de Charles Strouse e Martin Charnin (como “Tomorrow”, a mais famosa) e libreto de Thomas Meehan. Logo se tornou um dos maiores “family entertainment” (peças para adultos e crianças) do mercado de musicais e gerou a primeira adaptação ao cinema em 1982.
A atriz Ingrid Guimarães foi uma das fisgadas pelo fenômeno. Quando criança, era viciada no musical e diz ter visto a versão em filme 128 vezes.
“Eu comecei a fazer teatro [encenando ‘Annie’] na escola, no churrasco da minha casa, nas festinhas, minhas irmãs faziam as outras personagens, minhas tias viram 20 vezes”, relembra a atriz.
Não à toa, é com “Annie” que ela faz seu primeiro musical. Ingrid dá corpo à senhora Hannigan, à frente do orfanato onde vive a protagonista -aqui interpretada por três atrizes mirins, Luiza Gattai, Maria Clara Fernandes de Rosis e Sienna Belle Pontes Vicente, que se revezam nas sessões.
Um tanto desvairada, Hannigan é geralmente interpretada por comediantes, como Ingrid, que leva humor ao jeito grosseiro como sua personagem cuida das garotinhas.
A atriz, que nunca tinha cantado em cena e precisaria deixar a família no Rio para a temporada do musical, hesitou em aceitar o convite. “Mas minha filha falou: ‘Mãe, é o seu sonho’. É, é o meu sonho. Quer dizer, meu sonho na verdade era fazer a Annie, mas eu não tenho mais idade.”