Os quadros dão as costas para o parque. No térreo do pavilhão da Bienal de São Paulo, enormes pinturas presas às vidraças formam uma paisagem estilizada só para quem está do lado de dentro do prédio modernista.
Lá fora, os que passeiam pelo Ibirapuera verão só o avesso das telas. É como se essa 33ª edição da mostra de arte contemporânea se trancasse nela mesma -em vez de caixa de ressonância, uma caixa preta.
Quando foi escalado para comandar a Bienal de São Paulo que abre as portas nesta semana, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro anunciou uma espécie de revolução. A exposição teria bem menos artistas, não se prenderia a um tema central e abriria espaço para mais vozes que não a dele.
“O risco implícito do modelo anterior é instrumentalizar o artista, como se ele tivesse de ilustrar um conceito prévio”, diz o curador. “Estava na hora de pensar uma certa radicalização desse formato, e a Bienal tem músculos para isso.”
Sua estratégia então foi delegar o comando. Sete artistas -o uruguaio Alejandro Cesarco, o espanhol Antonio Ballester Moreno, a argentina Claudia Fontes, a sueca Mamma Andersson, os brasileiros Sofia Borges e Waltercio Caldas e a americana Wura-Natasha Ogunji- foram chamados para montar pequenas constelações de trabalhos espalhadas pelo pavilhão, como ilhas num arquipélago de concreto.
O critério usado ali seriam as tais “Afinidades Afetivas” que batizam a mostra. Num exercício com arriscado pendor para o narcisismo, cada artista-curador parece ter usado seu gosto pessoal, em especial a queda por outros artistas com trabalhos que se assemelham aos deles, como base conceitual das seleções.
Não foge do que a figura do curador vem fazendo ao longo das últimas décadas, com a diferença que, no lugar da mão pesada de um só autor, outras cabeças põem o seu umbigo em primeiríssimo plano.
Nada disso, nem mesmo na trajetória de Pérez-Barreiro, é uma grande novidade. Há 11 anos, ele fez algo parecido na Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, escalando outros artistas como chefes de conjuntos estéticos dentro da exposição.
Mas o recurso agora vem no rastro de dois movimentos impossíveis de ignorar -por um lado, o autoritarismo dos curadores parece estar em decadência, com cada vez mais deles abrindo mão do poder em nome de uma horizontalidade meio forçada na escolha dos artistas, enquanto, por outro, a atualidade carrancuda desperta no público um desejo de que a arte opere mais como uma válvula de escape.
O resultado, à primeira vista, é uma mostra sem pulso nem temperatura. Deslumbrante em muitos momentos, mas embalsamada como bibelô para olhos famintos de beleza e avessos à realidade.
Ballester Moreno, o artista do térreo, arregimenta uma série de trabalhos anticlimáticos logo na entrada, com telas em que alguns elementos geométricos representam temporais, plantas e raios de sol.
Mais adiante, Sofia Borges constrói um labirinto forrado por cortinas de veludo. Seu cenário espetacular subverte a monumentalidade que marca os trabalhos montados ao redor das rampas do pavilhão.
No lugar de um totem ou megainstalação varando os pisos do prédio, as delicadas peças ali se perdem nas dobras do tecido espesso, uma espécie de alcova dos sentidos que não destoaria do enredo de um filme de David Lynch.
Essa escuridão luxuriante se desfaz no segundo andar, onde recortes pensados por outros artistas, além de nomes escalados por Pérez-Barreiro em pequenas mostras individuais, parecem se perder na imensidão do pavilhão, que não perdoa a escala mais tímida de muitas dessas obras.
Isso nem sempre é problemático. Os trabalhos de Lucia Nogueira, por exemplo, uma artista brasileira radicada em Londres, onde morreu há duas décadas, brilham todos ali numa frequência ímpar.
Os caquinhos de porcelana arranjados sobre uma mesa e etiquetados, cada um com uma palavra, por Claudia Fontes também evocam ao mesmo tempo fragilidade e contundência, o poder de um discurso que se desfaz diante da violência do mundo sem perder as suas arestas afiadas.
Longe de tudo, o último andar esconde o atrito entre dois recortes nada menos atraentes. De um lado, a frieza cerebral das peças mais minimalistas e geometrizantes escaladas por Waltercio Caldas e, de outro, a exuberância quase violenta das pinturas de Mamma Andersson e sua seleção de artistas nórdicos tão impressionantes quanto desconhecidos por essas terras.
Em sua perseguição do pluralismo, a atual Bienal de São Paulo esbarra na cacofonia, mas não deixa de ser um estranho -e sedutor- espetáculo em horas sombrias e agrestes.