Jeferson Tenório só leu um livro inteiro aos 24 anos. Vinte anos depois, em 2021, seu romance O Avesso da Pele conquistou o Prêmio Jabuti de Literatura – a mais importante premiação literária do país.
“Olha, eu costumo dizer que a coisa mais importante que me aconteceu na vida foi me tornar leitor. Me tornei leitor aos 24 anos. Comecei a ler literatura e isso mudou minha vida completamente. Também fui professor durante muitos anos e era o que dizia aos meus alunos: tornem-se leitores o mais rápido possível, porque muda a perspectiva, transforma a trajetória e, principalmente, para estudantes de periferia, jovens negros que têm poucas oportunidades. A leitura, de fato, mudou minha história, e é isso que costumo dizer às pessoas”, relatou o escritor.
Tenório participou de um bate-papo na unidade do Senac em Americana, na última quinta-feira (3). O escritor conversou com a reportagem da TV TODODIA, que acompanhou o encontro.
Segundo ele, sua literatura mistura elementos autobiográficos e ficcionais, a ponto de, às vezes, nem ele mesmo distinguir completamente o que é real ou inventado.
O protagonista de O Avesso da Pele, por exemplo, é um professor negro, carioca, radicado em Porto Alegre. Tamanha semelhança não é coincidência. O próprio Tenório, nascido no Rio de Janeiro, que hoje divide sua rotina entre São Paulo e a capital gaúcha, lecionou português na rede pública de Porto Alegre por duas décadas.
A obra aborda questões de identidade, relações raciais, violência e negritude, causando, assim, grande impacto no panorama recente da literatura brasileira.
O livro figurou em terceiro lugar na lista dos melhores títulos do século XXI elaborada pelo jornal Folha de S.Paulo, junto de Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, e Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Os três autores que compõem o pódio são negros.
Questionado se identifica o surgimento de um movimento literário, Tenório considera que o momento atual é resultado de uma luta histórica iniciada com o movimento negro e os coletivos da década de 60. “Com Lélia Gonzalez, surge um movimento que chega às universidades e, nos anos 2000, se fortalece com a entrada de estudantes negros pelo sistema de cotas”, afirmou.
Ele foi o primeiro cotista a se graduar em uma universidade de Porto Alegre.
“O que vivemos hoje é fruto dessas conquistas. Há autores que escrevem com grande qualidade: Paulo Lins (Cidade de Deus), Itamar Vieira Junior (Torto Arado), Conceição Evaristo (Olhos d’Água). Alguns podem chamar isso de movimento literário, mas considero mais uma peça do quebra-cabeça da história do Brasil, só que agora sob uma perspectiva negra”, acrescentou.
Estela sem Deus (2018), O Avesso da Pele (2020) e De Onde Eles Vêm (2024), os três últimos romances de Tenório, serão adaptados para o cinema.
O primeiro livro negociado foi O Avesso da Pele, do qual o autor não participou da elaboração do roteiro. Nos outros dois, atuará como consultor.
Indagado sobre a influência do cinema em sua produção literária, ele respondeu: “Minha escrita não sei se é diretamente influenciada pelo cinema, mas eu gosto muito da sétima arte, então acredito que tem relação. Sou grande apreciador do cinema francês e brasileiro. Costumo criar cenas pensando em imagens, o que certamente tem influência. Toda forma de cultura contribui para a escrita”, destacou.
O racismo estrutural é um tema constante em sua obra. Tenório relatou ter sido abordado pela polícia 16 vezes. A última ocorrência aconteceu durante uma sessão de fotos para o New York Times, jornal norte-americano ao qual ele havia concedido entrevista sobre a tentativa de censura sofrida por O Avesso da Pele.
O livro foi envolvido em uma polêmica e sofreu pedido de recolhimento de exemplares em algumas escolas com base na alegação de que o conteúdo seria impróprio para menores, linguagem classificada como imprópria por alguns professores.
“Estávamos no parque, perto da minha casa, em Porto Alegre. Já tínhamos feito a entrevista e fomos fotografar perto de um lago, porque é um lugar bonito. Aí chega a Brigada Militar e faz o enquadro. O argumento foi que nos confundiram com dois traficantes que atuariam ali. O mais curioso é que o policial não se dirigiu a mim, só falava com o fotógrafo, que era branco. Só perguntava a ele, comigo não conversou. Enfim, é mais um episódio triste entre tantos que pessoas negras acabam enfrentando. Principalmente em uma cidade como Porto Alegre, que é extremamente segregadora. São situações que, infelizmente, ainda ocorrem”, lamentou.
Para Tenório, a escola é um espaço de formação e cidadania, um ambiente que representa tanto um ensaio quanto a própria vida acontecendo.
“Acredito que quanto mais tempo o estudante puder permanecer nesse ambiente de aprendizado e convivência, melhor. É também um espaço essencial para a formação de leitores. Precisamos muito de leitores no Brasil. Quando uma escola se propõe a permanecer mais tempo com os alunos, temos um bom futuro pela frente”, explicou.