De caráter revisionista, “Contramemória” é a primeira exposição a ocorrer no Theatro Municipal desde 1922
Quem visitar o Theatro Municipal de São Paulo nas próximas semanas vai ser saudado por uma criança negra descamisada, vestindo bermuda, com o rosto escondido por um pano, só os olhos à mostra. Uma olhada mais atenta revela que seu corpo está cravejado de balas, com furos nas pernas, nos braços, no abdômen e na barriga.
A escultura em bronze de Flávio Cerqueira –artista conhecido por uma outra escultura, em que um menino preto derrama sobre o corpo uma lata de tinta branca– não está ali por acaso. “Tião”, nome do trabalho, estabelece uma conexão com duas esculturas de estilo clássico que decoram o teatro, posicionadas nas laterais da escadaria. Eram elas que davam as boas-vindas aos visitantes até que este garoto, vítima da violência, saísse das ruas do Brasil e adentrasse o majestoso hall da sala de espetáculos.
A obra dá o tom da exposição “Contramemória”, que procura rever de maneira crítica a Semana de Arte Moderna de 1922 ao trazer para diversos espaços do teatro obras de arte que refletem histórias plurais, diferentes das vivências dos homens brancos abastados que organizaram a mostra original, há cem anos.
“A Semana de 1922 foi uma semana de São Paulo e não em São Paulo, no sentido de que ela foi uma mostra ‘paulistocêntrica’, mesmo com participantes do Rio. Era classista e racista no sentido de [não] trazer outras vozes ou corpos dissidentes para o centro da discussão, limitada na questão de incluir o Brasil nas formas de pensar o Brasil”, diz Jaime Lauriano, um dos curadores da mostra.
Apesar da crítica, ele destaca os pontos positivos da Semana de 22 –r omper com o parnasianismo nas artes e o academicismo literário e artístico.
De caráter revisionista, “Contramemória” é a primeira exposição a ocorrer no Theatro Municipal desde 1922. Os organizadores puseram lado a lado obras do acervo modernista do Centro Cultural São Paulo, o CCSP, mantido pela prefeitura, e de artistas contemporâneos valorizados no mercado, a maioria negros, indígenas e mulheres, criando assim um diálogo entre uma coleção pública e outras, privadas.
Do acervo municipal, conta o curador, vêm raridades nunca ou poucas vezes expostas, como desenhos de Tarsila do Amaral, uma aquarela de Anita Malfatti, um retrato de Oswald de Andrade feito por Di Cavalcanti e monotipias dos anos 1950 de Rubem Valentim. O conjunto, prossegue Lauriano, mostra o que a prefeitura configurou como pensamento modernista oficial, ajudando assim a construir a memória pública em torno da Semana de 22.
Já os artistas contemporâneos participam com obras abertamente críticas à semana modernista, a exemplo de duas pinturas baseadas num famoso retrato dos artistas da mostra original -todos homens brancos. Numa das telas, O Bastardo apaga as feições de alguns rostos e insere negros e indígenas no quadro, estes sim com expressões faciais. Na outra, Daniel Lannes faz um grande borrão de tinta, “manchando” o retrato modernista num gesto que oculta alguns personagens.
Mas não é anacrônico debater a ausência de negros e indígenas numa mostra de arte no Brasil de 1920, ou seja, olhar o passado com as lentes do presente? “Não tem jeito de nós não sermos anacrônicos. A exposição é anacrônica porque revisita a coleção modernista do Mario de Andrade [que deu origem à coleção do Centro Cultural São Paulo] a partir do debate, do diálogo com artistas contemporâneos e temas contemporâneos”, afirma a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, outra das curadoras da mostra.
“Mas também não é anacrônica se você pensar o que era São Paulo em 1922 –estamos falando de uma São Paulo que fez uma grande reforma urbana para se vestir como moderna, expulsou justamente os negros para os arredores do centro, coisa que acontece aqui, neste momento, também. São Paulo já era uma cidade profundamente desigual”, acrescenta ela.
Dispostas ao longo da mostra, estão também obras sobre a convulsão do Brasil de hoje, a exemplo das fotografias preto e branco de Mauro Restiffe mostrando o incêndio no auditório do Memorial da América Latina e também um protesto na época do impeachment de Dilma Roussef, em 2016. Na onda de rever o papel dos monumentos públicos, o próprio Lauriano participa com uma pequena escultura de um bandeirante feita do material obtido a partir da fundição de balas de armamentos da polícia.
Lauriano conta que um dos desafios da mostra era como dispor as obras no Theatro Municipal, um prédio tombado. Segundo ele, nenhum trabalho podia encostar na parede. A solução foi dada com a expografia desenhada por Edu Chalabi. Ele criou uma estrutura tubular em preto e dourado à qual as obras são presas, estrutura esta disposta no meio das salas e corredores da exposição. Já a artista Daiara Tukano encarou a limitação criando um trabalho sonoro e uma cobra de papel de 200 metros posta no chão.
Para Lauriano, “Contramemória” se insere num conjunto de eventos que têm discutido o legado modernista, desde o ano passado. Ele cita, entre outros, a mostra organizada por Aracy Amaral no Museu de Arte Moderna de São Paulo e a exposição “Raio que o Parta”, em cartaz agora no Sesc 24 de Maio. “A gente [a mostra no Theatro Municipal] não é ponto de chegada nem de partida. A gente está junto.”
CONTRAMEMÓRIA
Quando até 5 de junho; de terça a sexta, das 11h às 17h; sábado e domingo, das 10h às 15h
Onde Theatro Municipal de São Paulo – Praça Ramos de Azevedo, s/nº, São Paulo
Preço Grátis; necessário retirar ingresso antecipado
Link: https://theatromunicipalsp.byinti.com/#/event/exposicao-contramemoria