2020 tem sido um ano desafiador para todos. Atualmente, vivemos uma corrida pelo desenvolvimento de uma possível cura ou vacina para COVID-19 no Brasil e no mundo. Nesse cenário, a ciência tem se mostrado uma peça-chave para enfrentar a pandemia. Contraditoriamente, o conhecimento científico tem enfrentado, nos últimos anos, ataques constantes e dúvidas sobre sua legitimidade. A pandemia que enfrentamos é também informacional.
Essa crise de confiança sobre a ciência cresceu conjuntamente com a expansão das redes sociais e a grande quantidade de conteúdos disponíveis. Novamente, mais uma contradição. Ao mesmo tempo em que o acesso às informações se tornou mais fácil e rápido, cresceu também a propagação de informações falsas, as conhecidas fake news e outras teorias da conspiração, que atropelam, constantemente, informações fundamentadas na ciência. Aqui vale ressaltar a diferença filosófica entre “doxa”, de origem grega que significa “opinião”, e “episteme”, também de origem grega que significa “conhecimento”.
O ataque à ciência é apenas um dos reflexos das fake news. Embora o movimento anticientífico não seja algo novo, é possível observar o seu crescimento mundial nos últimos anos. Digo mundial pois não é algo exclusivo do Brasil. Movimentos semelhantes são vistos na França, no Japão e nos Estados Unidos, onde se observa que grupos de pessoas não apenas tem negado o conhecimento científico, mas também questionado a sua legitimidade. Nesses movimentos, nota-se que a desconfiança sobre a ciência acontece do mesmo modo que a desconfiança do governo, da imprensa ou de outras formas de poder.
A partir disso, é importante se questionar: o que é ciência? A ciência, diferente do conhecimento religioso ou conhecimento popular, é realizada a partir da escolha de um objeto de pesquisa que é analisado por um conjunto de técnicas e métodos de investigação, aprovados e debatidos por um grupo estudiosos da área. Atualmente, ela é entendida como a maneira mais adequada de produção de conhecimento sobre a realidade. Diferente do que se pensa, a existência da ciência como forma de conhecimento não faz com que outros saberes desapareçam ou percam seu valor. Cabe ressaltar, também, que todo conhecimento cientifico produzido não é uma certeza inquestionável. Por isso estudos são feitos, para testar e validar (ou invalidar) algo produzido, sempre a partir de métodos reconhecidos.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), a ciência ganhou destaque na elaboração de estratégias para o desenvolvimento dos países. As universidades se tornaram o centro de referência na produção desse conhecimento. Foi a partir de 1980 que esse panorama começou a se modificar e a ciência começou a perder sua base de legitimação social. Alguns pesquisadores afirmam que ela passou a ser acusada de servir apenas ao poder político, denunciado por corrupção, e logo se estabeleceu uma relação entre a rejeição de um governo, e, consequentemente, rejeição a ciência. Essa crítica se estendeu com pessoas afirmando que os cientistas serviam apenas aos interesses privados. No entanto, observa-se que essas críticas foram acompanhadas de um desconhecimento do que era a própria ciência e seus princípios básicos. Esses grupos, embora pequenos, se fortalecem de suas próprias fontes de informação e com argumentos fracos na tentativa de deslegitimar a ciência. As redes sociais constituem a principal ferramenta usada para disseminar essas ideias. A replicação de informações falsas, mesmo quando acontecem no intuito de corrigi-las, geram um efeito similar ao da desinformação.
Entre aqueles que influenciam os movimentos anticiência, nota- -se que muitos desses indivíduos hoje ocupam cargos nos governos de diversos países. São pessoas que priorizam uma política que não é baseada em evidências científicas, mas em princípios e valores próprios. Nesse contexto, ocorre uma disputa pela informação, na qual a ciência tem sido o principal alvo de ataques. Assim, a crítica de figuras públicas à mídia e à ciência tem gerado um sentimento de desconfiança generalizado na sociedade em relação aos meios de comunicação e ao conhecimento científico.
Com essas críticas, as universidades também não saíram ilesas. O que gera preocupação, principalmente, é o fato de não se ter mais uma visão nítida da importância da ciência para o país e para a sociedade como um todo. Fazer pesquisa envolve tempo e dinheiro, e isso só é viável com o apoio da sociedade e dos governos.
O debate sobre como as pessoas escolhem no que acreditar e por que algumas rejeitam consensos científicos é complexo e inconclusivo. O desafio imposto a nós, cientistas, é o de dialogar mais com a sociedade, reconquistar sua plataforma de legitimação e demonstrar o porquê e como fazemos ciência. Se distanciar da sociedade e nos fecharmos em nossos muros científicos afastará ainda mais a sociedade dos frutos de nossos trabalhos e do próprio acesso ao conhecimento. A ciência precisa mostrar que está aberta ao debate, que é um trabalho constante de fazer e se refazer. O que é ciência? O que diferencia o conhecimento científico de outras formas de conhecimento? Como esse conhecimento é produzido? Por quem? Para quê e para quem? Como a ciência se relaciona com a política e a sociedade em geral? Essas perguntas se tornaram ainda mais importantes de serem respondidas e discutidas. Do contrário, alimentará ideias conspiratórias e um movimento anticiência. A única forma de enfrentar o atual cenário é abrindo e compartilhando os conhecimentos.
Por Karime Cheaito