quinta-feira, 18 abril 2024

Derrota de Le Pen é alívio para jogadores

Pai da candidata havia criticado o selecionado por ‘não representar o país’ 

Mundial | Geração ‘black-blanc-beur’ (negro, branco e árabe) chega como favorita (Foto: Facebook Équipe de France de Football)

Dias antes da derrota de Marine Le Pen para Emmanuel Macron no segundo turno das eleições presidenciais francesas, esportistas do país haviam assinado uma carta aberta, publicada no jornal Le Parisien, na qual pediam para que os cidadãos votassem pela reeleição do atual presidente.
Campeão do mundo em 2018 com a França, o meio-campista Blaise Matuidi foi um dos signatários, acompanhado do ex-companheiro de seleção Dimitri Payet e das jogadoras da equipe nacional feminina Amandine Henry e Eugénie Le Sommer.

Atletas notáveis de outras modalidades também assinaram a carta, mas é no futebol que a política anti-imigração defendida pela líder ultradireitista encontra maior enfrentamento e repercussão.

Matuidi é filho de mãe angolana e pai congolês. Payet nasceu na ilha de La Reunión, departamento ultramarino francês localizado no Oceano Índico. São ambos negros, têm origens fora das fronteiras europeias da França e, por isso, cresceram ouvindo de políticos como Marine Le Pen que não são franceses legítimos. Não surpreende que se posicionem publicamente contra ela e contra o que sua política representa.

“Sentimos que a França não se reconhece totalmente nesta equipe”, disse Jean-Marie Le Pen, pai de Marine e também candidato à presidência nos anos 1990 e 2000, durante a Copa do Mundo de 2006. “Talvez, o técnico [Raymond Domenech] tenha exagerado na proporção de jogadores de cor.”

Em 1998, Jean-Marie Le Pen já havia dito que a equipe que representaria a França no Mundial daquele ano, sediado no país, era negra demais.

O título conquistado sobre o Brasil, em Paris, com dois gols de Zinedine Zidane, filho de argelinos, representou um golpe na popularidade do ultradireitista, que viu o rosto do mais novo ídolo francês reproduzido no Arco do Triunfo com a frase “Zidane presidente!”.

RECONCILIAÇÃO

Foi a vitória da geração “black-blanc-beur” (negro, branco e árabe), que além de Zidane contava, por exemplo, com Lilian Thuram, nascido em Guadalupe, Thierry Henry, com pais de Guadalupe e Martinica, Robert Pires, filho de um português e uma espanhola, e Youri Djorkaeff, com raízes armênias.

A revista semanal L’Express publicou, sob o título “A Copa do Mundo que mudou a França”, texto em que dizia o seguinte: “O povo francês, todo o povo francês, foi capaz de se identificar com esse time da França porque foi uma equipe multicultural, composta de grandes jogadores e, acima de tudo, grandes pessoas. Com ídolos como esses, nossos filhos podem sonhar com um futuro brilhante.”

O sentimento de orgulho geral por uma França integrada, porém, não durou muito. Nem mesmo com o título da Eurocopa em 2000.

Em outubro de 2001, menos de um mês após os atentados às Torres Gêmeas em Nova York, franceses e argelinos se enfrentaram em uma partida de futebol pela primeira vez desde a independência da Argélia, em 1962. O amistoso era visto como uma oportunidade de reconciliação.

No gramado do Stade de France o que se viu foi um jogo que não terminou em razão da invasão de torcedores ao gramado. O episódio teve sérias implicações para os imigrantes no país e serviu de combustível para o já inflamado Le Pen, que meses depois chegou ao segundo turno das eleições presidenciais, perdendo o pleito para Jaques Chirac.

Mais recentemente, em 2010, a França atingiu o que é considerado como o ponto mais baixo da história de seu futebol.

No Mundial da África do Sul, uma equipe em desacordo com o treinador, Raymond Domenech, não conseguiu passar da fase de grupos. O atacante Nicolas Anelka, muçulmano, desentendeu-se com o técnico após a derrota para o México na segunda rodada e foi expulso da delegação. O grupo ainda adicionou ao vexame o capítulo da greve no ônibus. Antes de um treino prévio à última partida, diante dos sul-africanos, os atletas se recusaram a sair do veículo.

CAMPEÕES

Com a imagem arranhada depois de seguidos fracassos esportivos, exacerbados pelos acontecimentos extracampo, a federação francesa recorreu em 2012 à imagem de Didier Deschamps, campeão do mundo em 1998, para comandar uma renovação de nomes e de perfil na equipe nacional. Saíram os rebeldes, entraram os comportados.

N’Golo Kanté, Paul Pogba e Kylian Mbappé, atletas dedicados e de postura quase irretocável, tornaram-se os símbolos do bicampeonato mundial em 2018, na Rússia.

Para desgosto de Marine Le Pen, assim como para seu pai duas décadas antes, o rosto do título conquistado em Moscou tinha traços da imigração. Mbappé, um garoto filho de uma argelina e de um camaronês, nasceu em Bondy, comuna da periferia de Paris, e se transformou na maior sensação futebolística do país desde Zidane.

Liderados pelo menino da periferia, os franceses chegarão ao Qatar como favoritos.

Agora, sem Marine Le Pen no mais alto cargo da nação, os comandados de Deschamps poderão ter um pouco mais de paz no caminho rumo ao tricampeonato, mesmo que a ultradireitista e seus partidários não se privem de mostrar novamente o desagrado com as cores e as origens daqueles que podem fazer, de novo, a França campeã. 

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