
O debate sobre o Brasil desenvolver armas nucleares, impulsionado pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Deputado Kim Kataguiri (União), ecoa uma tese de soberania sedutora. Confesso que o impulso primário, de que “se alguém tem, nós também podemos ter” em nome do respeito nacional, é compreensível e, em princípio, legítimo.
A PEC busca derrubar o veto constitucional ao uso militar da energia nuclear. No entanto, a análise da conjuntura geopolítica atual nos obriga a ir além desse desejo. Especialistas em defesa e relações exteriores alertam: aprovar a PEC seria um ato de autossabotagem geopolítica, com custos econômicos e de credibilidade que superam qualquer ganho ilusório de poder. A realidade, neste caso, não pode ser tão simplista.
O Confronto com o Direito Internacional e o Desafio ao Cone Sul
A proposta legislativa coloca o Brasil em rota de colisão imediata com a arquitetura de segurança que o próprio país ajudou a construir. O Brasil é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) desde 1998, que exige a renúncia à militarização nuclear.
Mudar a Constituição Federal não tem o poder de revogar os tratados internacionais vinculantes que o país assumiu. Se aprovada, a PEC significaria a ruptura imediata com esses compromissos, transformando o Brasil, da noite para o dia, em um estado proliferador.
Mais gravemente, a PEC ameaça o sistema regional de segurança na América Latina. O acordo de salvaguardas da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), criado em 1991, é um modelo de cooperação que desnucleariza o Cone Sul. Quebrar unilateralmente esse pacto de confiança obrigaria vizinhos estratégicos, como a Argentina, a reavaliar suas políticas de segurança, reintroduzindo o risco de uma corrida armamentista na região.
O Eco de Enéas: Poder Bruto vs. Credibilidade
A lógica por trás da PEC é a mesma defendida por Enéas Carneiro: o respeito internacional é garantido primariamente pelo poder de dissuasão. A ausência de um arsenal nuclear faria do Brasil um país vulnerável e refém de potências.
Contudo, analistas de relações internacionais consideram essa visão “perigosamente simplista”. O “respeito” obtido por nações isoladas com armamento nuclear, como o Irã e a Coreia do Norte, vem acompanhado de sanções econômicas severas e exclusão dos principais fóruns de decisão global.
A adesão do Brasil ao TNP foi um movimento estratégico que priorizou a credibilidade diplomática, essencial para superar o déficit de confiança pós-regime militar e garantir acesso a vantagens econômicas e tecnológicas.
O Custo Proibitivo da Militarização
Além do isolamento diplomático, a PEC impõe um ônus financeiro colossal. Embora o Brasil domine o ciclo de enriquecimento de urânio por ultracentrifugação, o desenvolvimento de um programa nuclear militar crível exige muito mais:
O urânio para reatores (Angra) é enriquecido a 3,67%; para uma bomba, seria necessário enriquecê-lo a mais de 90% (grau de armamento), exigindo um desvio de propósito e de inspeção.
Seria preciso investir pesadamente na miniaturização da ogiva, no desenvolvimento de mísseis balísticos (vetores de entrega) e na criação de uma infraestrutura segura para testes.
O custo de um programa militar completo se estenderia por centenas de bilhões de reais, desviando recursos essenciais da defesa e do desenvolvimento social. Para agravar a situação, a quebra do TNP levaria à interrupção imediata da cooperação internacional, sabotando o programa nuclear pacífico existente, crucial para a geração de energia em Angra e o projeto do submarino da Marinha.
Isolamento Geopolítico
O maior custo da aprovação da PEC seria a perda imediata e irreparável da credibilidade brasileira. O país perderia seu status de líder moral e ator construtivo, passando a ser visto apenas como um proliferador.
“A credibilidade internacional, conquistada com o fim do Programa Paralelo e a fundação da ABACC, é um ativo estratégico de valor inestimável”, afirma um especialista. A renúncia ao TNP seria um ato de autossabotagem diplomática, sacrificando a influência internacional por uma ilusão de poder que levaria à exclusão do país dos palcos de decisão global, colocando-o na “companhia indesejada” de nações isoladas.
O caminho da nação soberana, no século XXI, é pavimentado pela confiança e pela liderança multilateral, e não pela ameaça do terror.