
Há exato um ano, o Rio Piracicaba foi palco de um dos episódios mais graves de mortandade de peixes da sua história recente, escancarando a vulnerabilidade do ecossistema aquático regional e os impactos cumulativos da degradação ambiental. Estima-se que aproximadamente 100 toneladas de peixes tenham sido encontradas mortas ao longo do leito e das margens do rio durante o episódio de julho de 2024, configurando um dos maiores desastres ambientais da bacia. Entre as espécies mais afetadas estavam curimbatás, dourados, piaus, traíras e lambaris, essenciais para o equilíbrio ecológico e para a subsistência das comunidades pesqueiras locais.
A mortandade de peixes provocou um colapso na biodiversidade aquática do Rio Piracicaba — queremos crer que temporário! —, com efeitos em cadeia sobre o ecossistema. A poluição das águas afetou não apenas os peixes, mas também aves, répteis e mamíferos que deles se alimentavam, muitos dos quais desapareceram da região. Espécies ameaçadas tiveram suas populações ainda mais reduzidas, comprometendo a resiliência ecológica da bacia.
Tão graves quanto os impactos ao meio ambiente foram as consequências socioambientais desse desastre que ainda permanecem vivas. Pescadores artesanais, ribeirinhos e comunidades tradicionais que dependem diretamente do rio para sua subsistência ainda enfrentam sérias dificuldades para retomar suas atividades. A redução drástica da fauna aquática afetou diretamente a renda de dezenas de famílias, intensificou a insegurança alimentar e comprometeu laços culturais e modos de vida historicamente vinculados ao Rio Piracicaba.

Atualmente, não vemos mais a mesma quantidade de peixes e variações de espécies verificadas antes desta tragédia. Muitas famílias abandonaram seus lares e foram buscar a sorte noutros lugares. Trata-se de uma perda de identidade: carregam consigo a tristeza, a saudade do que um dia foi a vida junto ao rio, tudo que deixaram para trás para prover a subsistência de hoje. Muitos adoeceram e vivem hoje a base de medicamentos, com distúrbios e condições médicas especiais desenvolvidos a partir da tragédia, da incerteza do dia de amanhã.
As ações de socorro às famílias afetadas não foram suficientes para contornar os prejuízos. Os valores suplementares pagos a título de seguro defeso não chegaram a tempo e cessaram antes que a atividade de pesca pudesse ser restabelecida. Neste sentido, as linhas de crédito excepcionalmente disponibilizadas somente serviram ao endividamento, pois, sem a retomada da renda, as famílias não conseguem honrar seus compromissos.
As organizações signatárias desta nota — Instituto Aimara e SOS Rio Piracicaba — manifestam profunda preocupação com o estado atual do rio e reiteram que a proteção dos recursos hídricos não pode ser dissociada da garantia de direitos humanos, em especial dos direitos de comunidades que historicamente foram marginalizadas no processo de tomada de decisão sobre o território.
É urgente reforçar a fiscalização ambiental e a punição de crimes ecológicos, com transparência nas apurações e adoção de medidas de reparação integral de todos os danos pelos responsáveis por essa tragédia. Neste sentido, entendemos que:
- Devem-se adotar ações de restituição, compreendendo a restauração ecológica plena do rio, da fauna e flora, o que inclui o repovoamento com espécies nativas afetadas, além da recuperação da qualidade da água e das áreas degradadas próximas ao leito, a retomada das atividades tradicionais de pesca artesanal e o acesso livre e seguro ao rio pelas comunidades que dele dependem para subsistência e práticas culturais.
- Há que se implementar medidas de reabilitação. As comunidades pesqueiras atingidas enfrentam não apenas perdas materiais, mas também danos emocionais, sociais e culturais. A reabilitação exige a implementação de programas de apoio psicossocial, além de ações de capacitação e reinserção produtiva, com vistas à geração de renda alternativa enquanto os estoques pesqueiros não são plenamente reconstituídos. A reabilitação deve ser construída com diálogo direto com os afetados, garantindo o respeito às suas tradições e modos de vida.
- Há que se proceder à compensação, diante das perdas irreversíveis causadas pela mortandade, devendo-se assegurar indenizações justas e proporcionais às famílias atingidas, considerando os prejuízos econômicos decorrentes da interrupção da pesca, a redução da renda, a insegurança alimentar e o sofrimento moral imposto. A compensação deve respeitar critérios objetivos e transparentes, com participação das comunidades na definição dos parâmetros e nos processos de avaliação e distribuição.
- Como forma de reconhecer a gravidade da violação e valorizar o sofrimento das populações impactadas, há que se realizar atos oficiais de retratação, com ampla divulgação das causas e responsabilidades da mortandade. Isso deve incluir pedidos públicos de desculpas, cerimônias de memória ambiental e ações educativas nas escolas da região, contribuindo para a reconstrução do vínculo entre a sociedade e natureza, e para o fortalecimento da cidadania ambiental.
- Por fim, para que episódios semelhantes não se repitam, é essencial a implementação de medidas estruturais de prevenção, como o reforço da fiscalização ambiental, o monitoramento contínuo da qualidade da água, a responsabilização efetiva dos agentes poluidores e a revisão de políticas públicas que impactam a bacia hidrográfica. Além disso, devem ser criados mecanismos permanentes de participação social, assegurando que pescadores, ribeirinhos e organizações da sociedade civil tenham voz ativa nas decisões que afetam o rio e seu entorno.
As famílias tradicionais que vivem da pesca no Rio Piracicaba são as verdadeiras guardiãs do território e da biodiversidade. São elas que conhecem cada ciclo do rio, que preservam saberes ancestrais e que resistem, dia após dia, diante das pressões ambientais, econômicas e institucionais. Esses pescadores e pescadoras, muitas vezes invisíveis às políticas públicas, são também defensores ambientais de primeira linha e merecem nossa mais profunda admiração, respeito e reconhecimento. Proteger o rio é também proteger os modos de vida que dele dependem.
Relembrar este episódio não é apenas um exercício de memória, mas um chamado à ação. A crise ambiental do Rio Piracicaba deve ser tratada como um alerta para toda a sociedade e uma prioridade permanente na agenda dos governos. Que os nossos filhos e as futuras gerações possam desfrutar de um rio vivo e de toda a riqueza de sua biodiversidade.