A Câmara dos Deputados teve atuação pequena e majoritariamente contrária à agenda de promoção da igualdade racial entre os anos de 2015 e 2018, mostra estudo conduzido pelo OLB (Observatório do Legislativo Brasileiro).
O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que se autodeclarou pardo nas eleições de 2018, afirmou no final de novembro que o combate ao racismo deve se tornar uma agenda permanente e prioritária dos deputados.
O parlamentar falou durante a instalação de comissão externa para apurar o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40, por seguranças de um Carrefour em Porto Alegre.
“Infelizmente a gente sabe que o racismo é uma questão estrutural”, afirmou Maia. “Acho que nós precisamos aproveitar esse momento para que a gente possa fazer um debate com a sociedade e que a gente possa incluir de forma definitiva na pauta da Câmara essa questão.”
O estudo ao qual a Folha teve acesso mostra que o combate ao racismo não teve destaque na 55ª legislatura, de 1º de fevereiro de 2015 a 31 de janeiro de 2019.
A pesquisa analisou 16 projetos sobre o tema que tiveram tramitação relevante, 608 discursos e 270 emendas propostas por parlamentares e atribuiu a partir disso uma nota média a cada partido em uma escala que varia de -10 (mais contrário) a 10 (mais favorável).
A Câmara sofre com a sub-representação de parlamentares pretos e pardos, que somam atualmente 24% do total de deputados, enquanto 55,8% dos brasileiros, segundo o IBGE, compõem esse grupo –declaram-se pardos 46,5%, e pretos, 9,3%.
Os projetos analisados se dividem entre aqueles que tratam diretamente de relações raciais e aqueles que cuidam de questões que atingem desproporcionalmente a população negra.
No primeiro grupo está, por exemplo, a proposição que visa tornar o Dia da Consciência Negra feriado nacional. A proposta está encalhada na pauta do plenário desde 2016.
No segundo, a inclusão do feminicídio como crime hediondo, já que dados mostram que as mulheres negras têm 64% mais chance de serem mortas do que as brancas.
Há também as proposições que afetam negativamente a população negra de forma desproporcional. Foi incluída no estudo, por exemplo, a proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 negros representavam 66% da população prisional, contra 32% de brancos.
O resultado da análise mostrou que as bancadas que se comportaram de maneira contrária mais veementemente foram as do PEN (atual Patriota), PRB (atual Republicanos), PRTB e PR (atual PL).
Já as siglas de esquerda aparecem como os mais atuantes de forma favorável. As três bancadas com maior destaque na temática antirracista foram PSOL, PC do B e PT.
A pesquisa mostra, no entanto, que a maior parte da Câmara foi praticamente indiferente às questões raciais. Isso em um país onde para cada homem branco assassinado, há três negros mortos, segundo dados do Forum Brasileiro de Segurança Pública.
Dos 28 partidos avaliados, 20 obtiveram notas entre -2 e 2, o que significa que suas bancadas ignoraram largamente o tema durante os quatro anos da legislatura.
O estudo não abarcou a atual legislatura, iniciada em 1º de fevereiro de 2019, porque, com a reforma da Previdência dominando os debates no passado e a pandemia do coronavírus neste ano, não sobrou espaço relevante na agenda legislativa para outros temas.
Mas o coordenador do OLB, João Feres Jr., afirma que a tendência é de que a atual legislatura tenha posição mais contrária às pautas consideradas relevantes para a promoção da igualdade racial.
No ranking, por exemplo, o PSL aparece com discreta atuação favorável à agenda. A medição foi feita, no entanto, antes da ampliação da bancada com deputados de direita ligados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O estudo aponta que a maior parte dos deputados que se reelegeu em 2018 traz uma posição de indiferença ou contrariedade. Já a outra metade da Câmara, composta por deputados novatos, vem de uma onda conservadora.
“Veio o pessoal da extrema direita, o bolsonarismo e os partidos próximos a eles, em que há um discurso contra as cotas, um discurso como o do [vice-presidente Hamilton] Mourão de que não existe racismo”, diz Feres.
Isso não significa, segundo o pesquisador, que seja impossível fazer avanços no campo antirracista na atual legislatura. “Há outros partidos que são do centrão ou que estão na direita, mas teriam problemas de assumir uma postura abertamente anti-igualdade racial”, diz.
Ele cita como exemplo legendas que migraram para posições mais centrais, como o DEM de Maia, e outras que passaram a defender a manutenção de políticas de cotas, como o PSDB. Ambas receberam notas negativas na pesquisa.
“Eu acho que nada de costumes muito radical realmente passa, mas existe um espaço no meio em que teria espaço para avançar. Em 2022 vai haver uma discussão sobre política de cotas e só manter a política de cotas como está no atual cenário político já seria em si uma vitória.”
Aprovada em 2012, a Lei de Cotas prevê que a política seja reavaliada após dez anos. O fato de essa reavaliação ocorrer durante o governo Bolsonaro preocupa deputados e ativistas do movimento negro de esquerda e centro.
Deputados ouvidos pela Folha afirmaram que, em reunião com movimentos negros, Maia defendeu a manutenção do sistema de cotas.
A presidente do Tucanafro, Gabriela Cruz, diz que a bancada do PSDB na Câmara atuará para manter a política atual.
“Embora nós tenhamos tido grandes avanços, ainda está aquém do esperado, não temos paridade”, afirma.
Ela cita o documento oficial do congresso do partido em 2019, segundo o qual o partido defende “a manutenção da política de cotas, com atenção a critérios de renda, com inclusão de pessoas com deficiência, e raciais”.
Questionada a respeito da nota da sigla, que denota inércia da bancada em relação ao tema, Cruz disse que o núcleo negro do PSDB tem intensificado conversas com os deputados e que espera que o debate público sobre racismo leve o Congresso a se movimentar.
“As pessoas brancas estão iniciando um novo ciclo. Essas mudanças fazem o parlamentar ir buscar esse subsídio para entender o racismo. Se não buscou no passado, tem que buscar no futuro. Se a nota do PSDB foi ruim, posso te garantir que agora fomos para outro patamar”, diz.
O deputado Valmir Assunção (PT-BA), autor do projeto de nacionalização do Dia da Consciência Negra, diz que a postura da Casa reflete a sociedade. “A Câmara é um retrato da sociedade brasileira, nós vivemos uma sociedade muito racista. Esse é um aspecto que é cruel, é duro, mas é a realidade.”
Ele afirma que pretende organizar com deputados negros uma pauta prioritária para ser levada ao presidente da Câmara que será eleito em fevereiro de 2021, mas que vê dificuldade de achar um campo comum com parlamentares negros fora do campo da esquerda, como faz, por exemplo, a bancada feminina.
“A pauta das mulheres independente de se tem deputada feminista ou não tem pontos que tem sintonia. No caso racial não. Tem deputado que não acredita em política de cota, não acredita que existe racismo. Fica difícil construir algo junto”, diz Assunção.
Como a Folha mostrou em 2019, a sub-representação de deputados negros é ainda mais séria em postos de comando da Câmara. Para a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), um primeiro passo para a diminuição do racismo no Legislativo é a criação de estruturas na própria Casa que abriguem os parlamentares negros.
“Nós estamos tentando nos organizar para pautar a agenda, mas se não há um reconhecimento formal da Câmara, isso continua sendo invisibilizado. Eu acho que temos que forçar que a estrutura nos reconheça, seja por meio de uma secretaria ou de uma bancada”, diz.
Petrone também defende que há espaço para a convergência de centro e esquerda em torno da temática.
“É um momento que a agenda antirracista ganha espaço na mídia, em setores do centro, das empresas. Tenho uma concepção de antirracismo anticapitalista, mas existe uma agenda antirracista que está ganhando espaço para além da esquerda. Espero que o Congresso ouça a mobilização que está vindo de fora dele.”
Hoje, há duas frentes parlamentares que se denominam antirracistas, mas não há na Câmara estruturas como aquelas conquistadas pelas deputadas mulheres, como uma bancada formal e uma coordenadoria.
Os deputados e membros do movimento negro ouvidos disseram não terem sido procurados até o momento pelo presidente da Casa para a construção de uma agenda. A Folha entrou em contato com Maia, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.