Os estudos sobre Cannabis medicinal avançaram nas últimas três décadas, mas ainda é preciso um corpo maior de evidências que ateste a eficácia e a segurança dos tratamentos, segundo revisões sistemáticas da Cochrane, rede de cientistas independentes que investiga a efetividade de terapias. Entre 1988 e 2018, o número de estudos sobre o tema passou de 33 para 1.015.
Entre os casos estão esquizofrenia, epilepsia, demências, dores crônicas, náuseas e vômitos causados pela quimioterapia. Porém, a maioria das pesquisas envolve um número pequeno de pacientes, com pouco tempo de acompanhamento e sem um controle rigoroso de variáveis que podem influenciar nos resultados.
O uso do CBD, um dos compostos da maconha que não apresenta efeito psicoativo, em casos graves de epilepsia é a aplicação com maior número de estudos, alguns desde a década de 1980, como um trabalho de Elisaldo Carlini, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), com 16 pacientes que demonstrou eficácia da utilização da substância para o controle de crises epilépticas.
Em 2018, a FDA (agência americana reguladora de remédios) aprovou o Epidiolex, primeiro medicamento à base de CBD para casos de epilepsia – mais especificamente, tratamento das síndromes de Lennox- -Gastaut e de Dravet. Sua eficácia foi comprovada a partir de três estudos, com 516 pacientes com uma das síndromes, randomizados, duplo-cegos e com grupo de controle com placebo.
O medicamento, junto a outros remédios, mostrou ser mais eficaz que placebo no controle da frequência das crises. No Brasil, o único remédio à base de Cannabis registrado pela Anvisa é o Mevatyl (tem CBD e THC). É indicado para tratar espasmos moderados e graves relacionados à esclerose múltipla, mas é contraindicado para gestantes, idosos, portadores de epilepsia ou usuários de maconha. A eficácia foi testada em estudos com mais de 1.500 pacientes. Será comercializado com tarja preta e condicionado à prescrição médica.
LIMITAÇÕES
Revisões sistemáticas, que agrupam estudos e os analisam com critérios metodológicos rigorosos, têm apontado limitações e efeitos colaterais importantes para várias patologias em que hoje os compostos de Cannabis são indicados. Uma revisão da Cochrane de 2018 do uso da Cannabis para analgesia, que avaliou 16 estudos com 1.750 pacientes, concluiu que houve “baixa evidência de melhora modesta” das queixas de dor comparado com placebo (21% contra 17%).
Análise publicada neste mês de setembro por pesquisadores da Mayo Clinic diz que, embora estudos pré-clínicos sugiram que o CBD e o óleo de cânhamo tenham efeitos anti-inflamatórios e possam ser úteis para melhorar o sono e a ansiedade, os testes em humanos ainda são bem limitados. “É cedo demais para emitir uma opinião definitiva quanto à eficácia e à segurança”, diz Brent Bauer, pesquisador da Mayo Clinic. Em fórum sobre maconha realizado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), a neurologista da USP Laura Guilhoto concluiu sua fala com opinião semelhante: “São necessários mais ensaios clínicos”.
Segundo Guillhoto, revisões demonstraram que o uso do CBD melhorou a espasticidade em pacientes com esclerose múltipla, mas que é ineficaz no tratamento do Parkinson. Para a neurologista, novos fármacos à base de canabinoides são bem- -vindos e novas pesquisas, com maior número de pacientes e por longo prazo, devem ser feitas. Virgínia Carvalho, professora do curso de farmácia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), também defende o potencial terapêutico do produto no tratamento de doenças degenerativas. “É importante que as pesquisas continuem.” Um dos principais problemas hoje é a posologia para cada paciente.
RESOLUÇÃO
Por isso, o psiquiatra e conselheiro federal Leonardo Sérvio Luz defende a resolução do CFM que só aceita o uso dos canabinoides em ensaios clínicos controlados ou na falta de alternativas terapêuticas para crianças e jovens adultos com crises epilépticas refratárias aos tratamentos usuais.
Luz disse que entende os pais que lutam pelos remédios à base de Cannabis, mas que há uma diferença entre o desejo e as evidências científicas. “Nós, como entidade responsável por dizer o que o médico pode ou não fazer, não podemos agir de acordo com o desejo. Temos de nos ater às pesquisas. E, por enquanto, a conclusão é que faltam estudos com um maior número de participantes e de longo prazo.” Outro ponto levantado por Bauer é a existência de poucos estudos rigorosos de segurança para os canabinoides de “espectro completo”, ou seja, que têm outros compostos da planta além do CDB. Ele alerta que há um crescente número de relatos de lesão hepática em pacientes que usaram produtos à base de canabinoides.
Pesquisa sugere ‘efeitos adversos’ da terapia
Uma pesquisa canadense, que menciona 11 revisões sobre o tema, mostra que há eventos adversos relacionados ao uso dos canabinoides medicinais quando comparados com placebo. Entre eles, distúrbios visuais, hipotensão, alucinação e paranoia. “A interrupção devido a efeitos adversos ocorre em um em cada grupo de 8 a 20 pacientes. Independentemente do tipo de canabinoide usado, os eventos adversos são comuns e provavelmente subestimados”, escreveram os autores.
Grande parte dos produtos de uso terapêutico consumidos hoje nos EUA são vendidos como suplementos alimentares, o que dispensa as exigências que as agências reguladoras, como a FDA, fazem para registros de remédios. “Com exceção do Epidiolex, uma forma purificada do CBD derivado de planta, nenhuma outra forma do CBD tem aprovação da FDA, mas elas são vendidas em diversas formulações”, diz Karen Mauck, especialista em medicina interna da Mayo Clinic.
Segundo ela, esses produtos contêm quantidades variáveis de CBD, podem incluir outros compostos ativos da maconha e apresentar imprecisões no rótulo. “Antes de utilizar o CBD ou os óleos de cânhamo, é importante consultar um médico sobre os possíveis efeitos colaterais e interações com outros medicamentos. Cabe-nos questionar, há comprovação científica para eficácia e segurança da maconha nas inúmeras indicações propostas?” Para o médico Luis Correa, não há, mas independentemente disso, a preferência da família ou do paciente deve ser considerada. | FOLHAPRESS