sexta-feira, 22 novembro 2024

No centenário do Partido Comunista, repressão em Hong Kong é aviso da tolerância zero na China de Xi

Como Joe Biden deu continuidade ao clima de Guerra Fria 2.0 de seu antecessor, Donald Trump, é improvável que Hong Kong deixe de estar no centro do embate, que envolve outros aliados americanos 

Pequim fomentou a Lei de Segurança Nacional, que resumia todos os pesadelos de ativistas pró-democracia: basicamente toda forma de oposição ao comando comunista é passível de penas pesadas de prisão( Foto: Divulgação)

Símbolo do modelo chinês de interação com o mundo durante o comando da ditadura continental por Deng Xiaoping, Hong Kong se transformou num cintilante outdoor da tolerância zero e da autoconfiança do Partido Comunista, que completa 100 anos nesta quinta-feira (1º), sob Xi Jinping.

Jimmy, um jovem arquiteto de 24 anos, sabe bem disso. Seu nome, aliás, não é Jimmy, mas é assim que ele prefere ser chamado durante uma conversa por meio do Signal, aplicativo de mensagens vendido como um dos mais protegidos contra monitoramento e febre entre seus colegas.

Há dois anos, ainda na faculdade, ele foi preso durante os atos de rua que desafiaram Pequim e paralisaram a antiga colônia britânica por mais de seis meses. “Eu não sou contra a China, eu me considero chinês. Mas eles rasgaram tudo o que fazia Hong Kong ser especial”, conta.

Após quatro dias na cadeia, ele foi solto, mas alguns meses depois acabou condenado a um ano de prisão. A pena foi comutada porque ele era jovem e não tinha atividade política conhecida, mas Jimmy considera ter perdido a liberdade.

Naquela jornada de protestos, que começou contra uma lei que facilitava a extradição de presos para o continente e desaguou num embate geopolítico apoiado pelos Estados Unidos em prol da democracia, milhares tiveram destino semelhante.

É o caso dos ativistas entrevistados pela reportagem em novembro de 2019, quando a reportagem visitou a convulsão em curso. Sem exceção, todos estão na cadeia. O mais famoso deles é Joshua Wong, que pode ficar até oito anos preso por inúmeras participações em manifestações não autorizadas.

A tolerância zero de Xi foi forjada na repressão de 2019, mas ganhou corpo com a edição da Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, em plena pandemia de 2020. O texto enterrou o que Jimmy considerava “especial” na antiga colônia britânica.

Era o arranjo “um país, dois sistemas”, bolado por Deng quando o líder acertou a devolução do território com os britânicos, em 1984.

Por 50 anos a partir de 1997, Hong Kong seguiria com seu capitalismo desregulado e liberdades inauditas no continente: imprensa livre, Judiciário e Legislativo autônomos, Executivo quase isso.

Era um tempo em que a China se abria ao mundo sob a orientação de Deng, sem se expor demais, escondendo seu crescimento. Hong Kong foi uma oferenda simbólica dessa disposição.

Os anos passaram, e Xi, com o poderio cristalizado como chefe da segunda maior economia do mundo, mudou o jogo –e Hong Kong virou sua peça de demonstração. Há a mais feroz repressão aos muçulmanos de Xinjiang, chamada de genocídio pelo governo americano e objeto de acirrada disputa narrativa, mas o que faz de Hong Kong um caso único é sua interação com o mundo exterior.

Enquanto há centenas de empresas americanas e europeias no território, poucos no Ocidente ouviram falar de Urumqi, a capital da distante província do noroeste chinês. Em 2014, dois anos depois da chegada de Xi ao poder, o governo publicou uma diretriz que passou despercebida à época: Hong Kong e a nada rebelde Macau deveriam ser integradas ao regramento político vigente no resto do país.

Era um ano de protestos, em que partes da região central da cidade foram tomadas pelo movimento Ocuppy Hong Kong. Jimmy era um adolescente e ficou encantado. “Parecia que a resistência duraria para sempre, que o Partido Comunista não venceria”, afirmou.

Obviamente, o PC Chinês já havia vencido quando Londres devolveu a colônia que ocupara por 156 anos. Mas a legenda teve a proverbial paciência chinesa para estender seu controle. Houve rodadas renovadas de protestos até a convulsão de 2019.

Em nome da estabilidade econômica, após uma queda de 1,2% no PIB no ano da crise, Pequim fomentou a Lei de Segurança Nacional, que resumia todos os pesadelos de ativistas pró-democracia: basicamente toda forma de oposição ao comando comunista é passível de penas pesadas de prisão.

Ao longo de 2020, sob o manto do combate ao coronavírus, a repressão ganhou força. Eleições locais foram adiadas, a bancada oposicionista no Conselho Legislativo renunciou quando viu que o dissenso começara a ser perseguido oficialmente, e a lei eleitoral vetou candidatos não alinhados a Pequim.

A China instalou em um hotel na chique Causeway Bay a sua polícia política no território, que antes não contava com forças controladas diretamente por Pequim. Agora, construirá uma sede nababesca para o órgão e celebrou a implantação de um disque-denúncia de violações da lei de segurança, que desde novembro já recebeu 100 mil ligações. “Já não sabemos se os vizinhos são confiáveis”, diz Maria, uma jornalista ocidental que também pede para não ter o nome verdadeiro divulgado.

Em princípio, a grande finança aplaudiu o movimento: o virtual bloqueio de Hong Kong durante 2019 foi péssimo para os negócios. Também é importante notar o apoio entre os moradores ao sistema: os partidos pró-Pequim, mesmo derrotados na eleição local daquele ano, tiveram 40% dos votos.

Xi foi visto como protetor do setor financeiro, que no mundo todo ignora questões humanitárias ou ideológicas, mas outras áreas de atividade começaram a deixar a cidade. Cerca de 50 mil pessoas saíram de Hong Kong em 2020. Pouco numa população de 7,5 milhões, mas significativo porque inclui segundo os relatos executivos e funcionários de setores de alta tecnologia, luxo e serviços. O sentimento geral é de que a cidade está se tornando indistinguível de outras metrópoles chinesas.

Ainda é incerto o impacto da renovada assertividade do comunismo chinês no território, mas o recado é claro para o mundo. Em 2019, os EUA apoiaram por meio de sanções contra autoridades honconguesas os movimentos pró-democracia.

Como Joe Biden deu continuidade ao clima de Guerra Fria 2.0 de seu antecessor, Donald Trump, é improvável que Hong Kong deixe de estar no centro do embate, que envolve outros aliados americanos.

A Austrália é, por exemplo, o destino preferencial dos 470 ativistas que pediram asilo a outros países depois de 30 de junho do ano passado, quando a lei passou a valer. Ao menos 110 oposicionistas foram presos, segundo o jornal South China Morning Post, e 64 já respondem a processos sob as novas regras.

Jimmy ainda frequenta lojas clandestinas em Kowloon, na porção continental de Hong Kong, onde mora. Lá, compra camisetas e adesivos com palavras de ordem contra Pequim, mas não sabe quando poderá usá-las. “É muito perigoso, nem o Apple Daily escapou, imagina uma pessoa só”, disse.

Ele se referia ao popular diário de oposição, que fechou as portas na semana passada após sofrer uma intervenção policial em nome da nova lei. Executivos da publicação foram presos, e um editorialista sênior que embarcava no domingo (27) para Londres foi detido no aeroporto.

Entre os ativistas, alguns poucos conseguiram fugir, talvez 20, a maioria para o Reino Unido. Um grupo pequeno enfrentou 600 km de barco ilegal para Taiwan, mas o governo local o enviou para os EUA, após a acolhida ser tornada pública.

Alvo de Pequim, que a considera uma província rebelde, a ilha parece não querer agravar as más relações com o continente. E isso porque Taipé é virtualmente independente.

Após a tempestade da Covid-19 completar o estrago e derrubar o PIB honconguês em 6,1% em 2020, o primeiro trimestre do ano viu um crescimento mais robusto, de 7,9% anualizado.

Os números podem reforçar o binômio de crescimento econômico e repressão turbinada, a versão do cartão de apresentações do Partido Comunista Chinês em seu centenário. 

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