sexta-feira, 22 novembro 2024

Número de tiroteios em escolas nos EUA é o maior em 22 anos

 De acordo com especialistas, é difícil determinar o que causou o aumento dos incidentes no primeiro semestre deste ano. Para Peter Langman, autor e psicólogo americano especialista em tiroteios em escolas, ainda é cedo para determinar se esse fenômeno

Para especialistas, o resultado é uma crise de saúde pública, em que os prefeitos não conseguem criar regras que regulem arma ( Foto: reprodução/ NBC)

Um levantamento do jornal americano The Washington Post indicou que, apesar do fechamento de milhares de instituições de ensino durante a pandemia, os EUA registraram 14 tiroteios em escolas durante o horário de aula desde janeiro deste ano, o mais alto nesse período em ao menos 22 anos.

“Além dos mortos e feridos, crianças que testemunham violência armada ou se protegem atrás de portas trancadas para se esconder dela podem ficar profundamente traumatizadas”, escreveu o jornal. O governo americano não tem uma base de dados para tiroteios em escolas.

Contando a partir do tiroteio na escola de ensino médio Columbine, no estado do Colorado -onde, em 1999, dois alunos mataram 13 pessoas-, o jornal analisou quase 300 incidentes. Os dados revelaram que mais de 256 mil crianças já foram expostas à violência armada nas escolas do país desde então.

De acordo com especialistas, é difícil determinar o que causou o aumento dos incidentes no primeiro semestre deste ano. Para Peter Langman, autor e psicólogo americano especialista em tiroteios em escolas, ainda é cedo para determinar se esse fenômeno é uma tendência ou uma anomalia, e os diferentes critérios usados por pesquisadores na hora de quantificar esses dados dificultam o trabalho.

“Poderia ser alguma coisa relacionada à Covid. Crianças, antes confinadas, agora retornando às escolas, mas não sabemos”, disse Langman à reportagem. “É complicado contar esses incidentes, e aí quando você compara uma base de dados com a outra, você vê números diferentes.”

Já para John Donohue 3º, professor de direito da Universidade Stanford, o aumento demonstrado pela base de dados do Washington Post não é surpreendente, e sim consistente com a situação atual do país.

À reportagem ele contou que o aumento da insegurança e do medo durante a pandemia levou ao aumento de tiroteios em geral. Além disso, protestos do movimento Black Lives Matter (em português, vidas negras importam) no último ano causaram uma diminuição do policiamento, e a combinação dos dois fatores levou mais pessoas a comprarem armas.

Existe uma cultura de armas nos EUA, disse o professor, alimentada por membros do Partido Republicano e pela NRA (Associação Nacional do Rifle) para o próprio benefício. Colocar medo e insegurança na população vende mais armas e traz mais votos ao partido.

“Nada promove mais a venda de armas ou votos para os republicanos do que aterrorizar americanos quanto ao crime, então isso é calculado para promover medo”, disse.

“Aí, quando milhões de pessoas compram armas, o crime realmente aumenta, trazendo grande benefício para o lobby de armas, porque eles podem dizer ‘olha, está realmente saindo do controle, é melhor você também comprar a sua’.”

Em abril do ano passado, a NRA processou o estado de Nova York por não considerar lojas de armas um serviço essencial durante a pandemia. Quatro meses depois, um juiz descartou o processo, alegando que a associação não tinha argumentos o suficiente para garantir a continuidade da ação.

Nos EUA, estados podem impedir que líderes de cidades e municípios criem regulamentações sobre um determinado assunto por meio das chamadas “leis preventivas”. Em relação ao controle de armas, o país possui atualmente mais leis preventivas do que as que regulam produção, compra, porte e uso de armas em si, de acordo com estudo publicado neste mês pela Associação Americana de Saúde Pública.

O resultado é uma crise de saúde pública, em que os prefeitos não conseguem criar regras que regulem armas.

Foi o caso dos estados de Flórida e Colorado, em que ocorreram os tiroteios de Parkland, em 2018, e de Boulder, em 2021, afirmou Jennifer Pomeranz, professora de saúde pública da Universidade de Nova York e uma das autoras do estudo, à reportagem.

Existe uma lacuna legal, explicou Pomeranz, em estados de maioria rural, por exemplo, onde o problema com armas tende a ser o suicidio e a violência armada se concentra apenas nas ruas das áreas mais urbanas.

“Comunidades rurais e comunidades urbanas têm necessidades diferentes e problemas de violência armada diferentes, então cada um precisa de medidas específicas. O estado não é capaz, nem seus legisladores têm interesse, em tomar medidas contra problemas urbanos se é majoritariamente rural.”

No dia 19 de junho deste ano, o Colorado se tornou o primeiro estado americano a revogar uma lei que proíbe cidades de criarem suas próprias regulações de armas de fogo. Até hoje, 44 dos 50 estados americanos possuem leis deste tipo.

De janeiro a julho deste ano, a violência armada -incluindo homicídio, assassinato, disparos acidentais, uso de arma em legítima defesa, suicídios, e tiroteios em massa- no país matou 173 crianças de até 11 anos e 677 adolescentes entre 12 e 17 anos, de acordo com dados da organização Gun Violence Archive (em português, Arquivo da Violência Armada).

“Nós nos tornamos uma sociedade armada, e as pessoas que acreditam em armas acham que essas pobres crianças sendo feridas por tiros são apenas um resultado do exercício dos seus direitos”, disse Pomeranz.

Em instituições de ensino em geral -incluindo universidades e escolas-, 40 incidentes de disparo de arma de fogo aconteceram neste ano, resultando em 12 mortos e 17 feridos, de acordo com dados da organização Everytown Research & Policy.

Durante 9 anos, nenhum país do G7 teve tantos tiroteios em escolas como os EUA. De 2009 até 2018, o país teve 144 vezes mais incidentes do que os segundos lugares da lista -Canadá e França, com dois tiroteios cada-, de acordo com um levantamento da CNN. Para Donohue 3o, o sucesso dos outros se deve a um rígido controle legal de armas.

“Você não pode parar tudo, mas você pode fazer ficar mais difícil”, disse ele. “Esse problema vai continuar se agravando nos EUA até que medidas sejam tomadas para restringir o poder de fogo e realmente mudarem algumas atitudes.”

Já para Langman, um agravante é que não existe foco suficiente na prevenção de tiroteios. A maioria do trabalho sendo feito em escolas é de medidas de proteção durante um incidente, como simulações com os alunos. Ele disse acreditar que, apesar de importantes, essas medidas não previnem ataques, apenas minimizam os danos.

“Existe uma grande lacuna de conhecimento entre muitas pessoas que trabalham em escolas”, disse ele. “Reconhecer os sinais de alerta e avaliar o risco antes que um ataque aconteça é como você previne um incidente de acontecer.”

Dentro da cultura de armas, existe ainda um sub movimento na internet que glorifica atiradores e assassinos em massa. Não só presente nos EUA, ele conecta pessoas ao redor do mundo, inclusive na América Latina.

Quando atiradores em Suzano (SP), por exemplo, mataram oito pessoas e feriram 11 no colégio Raul Brasil em 2019, o massacre foi comemorado em fóruns da dark web, e ambos os assassinos incluídos em uma galeria de ídolos.

Ter um lugar na internet que estimula e legitima tiroteios em massa contribui com que crianças e adolescentes concretizem a ação, disse à reportagem Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, uma organização que promove segurança pública no Brasil.

“Se a gente pensar, cinco anos atrás era muito mais difícil ter acesso a esse tipo de fórum, esse tipo de informação.”

Mas nem todos que participam desta subcultura se tornam atiradores. De acordo com um estudo de 2018 feito por professores da Universidade de Tampere, na Finlândia, dentro dos interessados por tiroteios em escolas existem quatro subgrupos: pesquisadores, fãs, “columbiners” (pessoas obcecadas com o tiroteio em Columbine) e imitadores.

Destes grupos, apenas os imitadores apresentam interesse explícito em cometer os atos, mas membros de um subgrupo podem pertencer a outros. Ou seja, ser um imitador não é uma característica isolada.

Na América Latina, mesmo que gradualmente, a violência armada nas escolas também está em crescimento, de acordo com dados da Unlirec, agência da ONU para o desarmamento da América Latina e do Caribe. O último grande tiroteio escolar na região foi o de Suzano, mas incidentes de porte de arma no dia a dia se tornam cada vez mais comuns.

A falta de uma base de dados uniforme dificulta o trabalho de quem estuda o aumento da violência armada na região, mas a aposta do Instituto Sou da Paz é que ele foi causado pelo maior acesso de alunos às armas de fogo dentro de casa.

Dos quatro últimos grandes tiroteios na América Latina, três aconteceram no Brasil. Para Pollachi, esse é um reflexo da violência disseminada em nosso país.

“O Brasil é, de longe, o país que tem a maior população, então, de certa forma, é natural a gente ter a maioria dos casos, mas a gente também é uma sociedade com altíssimos índices de violência, altíssimos índices de violência armada, que está indo nesse caminho de flexibilização ao acesso às armas”, disse Pollachi. 

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