sábado, 21 dezembro 2024

Pessoas trans relatam constrangimento, despreparo e preconceito durante atendimentos médicos

Relatos de constrangimento durante consultas médicas e dificuldade para agendar uma cirurgia de redesignação sexual pelo SUS não são incomuns, tanto para homens quanto para mulheres deste grupo social 

O direito a uma saúde digna e igualitária ainda é uma das demandas urgentes de pessoas trans, que celebram, no sábado (29), um dia de visibilidade de suas lutas. Relatos de constrangimento durante consultas médicas e dificuldade para agendar uma cirurgia de redesignação sexual pelo SUS não são incomuns, tanto para homens quanto para mulheres deste grupo social.

Quando precisa passar por atendimento, o bartender e técnico em turismo Cláudio Raphael Galícia Neto, 49, homem trans, conta que é constrangedor entrar numa sala de espera do ginecologista só com mulheres, algumas delas grávidas. “Me olham tentando decifrar se eu sou o marido de alguma paciente. Até que o médico me chama.”

Morador de São Paulo, Galícia afirma que, por várias vezes, sofreu preconceito de médicos durante o atendimento. “Acontece de o ginecologista ficar surpreso por eu ser homem, ficam constrangidos e te constrangem também. Fica complicado até se despir para o exame.”

O bartender Cláudio Raphael Galícia Neto, 49 anos, afirma sofrer preconceitos em consultas médicas por ser trans (Foto: Karime Xavier/Folhapress)

Digite seu texto aquEle conta que esperou cinco anos para fazer a mastectomia masculinizadora (retirada da glândula mamária e o reposicionamento da aréola) pelo SUS em janeiro de 2017, algo que nem imaginava ser possível na década de 1980, quando se descobriu trans.

“Não se tinha acesso a informações e muito menos atendimento específico ao público trans. Então eu apenas me conformava em ser uma lésbica masculinizada.”
Segundo Galícia, alguns profissionais insistem em chamá-lo pelo nome de registro, e não pelo social.
“E nós temos que engolir sapo, como sempre fazemos, porque precisamos do atendimento”, conta ele, que começou aos 24 anos o processo de hormonização por conta própria, o que envolve perigo à saúde.
Esse tipo de preconceito acaba por afastar pessoas trans do sistema de saúde, segundo a comunicadora e ativista Luiza Barros, 37. “Essa população deixa de ocupar esses espaços públicos por falta de informação ou para evitar o preconceito que, já sabe, irá sofrer.”
Luiza afirma que muitos transgêneros tomam altas doses de hormônio por conta própria, já que não conseguem orientação profissional de um endocrinologista ou clínico geral.
“Isso mexe com nosso corpo e com nosso psicológico. Muitas mortes acontecem há décadas em consequência disso. Precisamos de um de um atendimento mais acolhedor. E que seja respeitada também a nossa identidade.”
A saúde mental de pessoas trans é uma das questões que mais preocupa, segundo Keila Simpson, presidenta da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
“É necessário que o SUS ofereça um sistema humanizado, pois a falta de atenção com a saúde do corpo também afeta a saúde mental. É um problema de exclusão, e a pessoa sofre muito.”
Ela lembra, que há uma fila de espera de anos para conseguir realizar um procedimento transexualizador pelo SUS, porque não há profissionais, hospitais e ambulatórios suficientes para o público transgênero no país.
“Se o gênero foge do que o médico está habituado, homem e mulher, o SUS, em geral, não sabe como lidar”, diz Keila.
Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Unesp, divulgada em novembro de 2021, estima que a população adulta identificada como transgêneros ou não-binários (não pertencem a um gênero exclusivamente) no Brasil é de 2%. São 3 milhões de indivíduos, considerando apenas os 80% que são adultos, em uma população estimada em 214 milhões em 2021, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
“Há quem fale que queremos privilégios. Não queremos. Não pedimos que aceitem nossa formação, mas sim queremos uma inclusão respeitosa”, afirma a presidenta da Antra.
ACOLHIMENTO E COMPREENSÃO
Embora se acumulem queixas por uma atenção digna à saúde de pessoas trans, há exemplos de cidades que têm programas e serviços públicos de atendimento voltados à população LGBTQIA+ e de valorização da diversidade que têm colhido bons resultados, como em Goiânia (GO), em Belém (PA) e em Recife (PE).
Em São Paulo, há o ambulatório do núcleo TransUnifesp, da Universidade Federal de São Paulo, e o Ambulatório de Transexualismo do Hospital das Clínicas.
Pensando num atendimento específico e acolhedor ao público trans, a Prefeitura de Santa Maria (RS) inaugurou, em outubro de 2020, o Ambulatório Transcender (LGBTQI+ Processo Transexualizador), que realiza atendimentos via SUS.
Uma vez que a pessoa transgênero chega ao Transcender, passa por consultas com psicólogo e realiza exames clínicos para analisar se não há impedimentos à afirmação de gênero, segundo o psicologo César Bridi Filho, coordenador do ambulatório. Tudo pelo sistema público de saúde.
“Nossa expectativa neste ano é atender mais de mil pessoas transgênero da região”, explica Filho. “Nossa intenção é, ainda, ajudar na construção da identidade da trans.”

Equipe técnica da Casa de Saúde de Santa Maria participa de capacitações e rodas de conversas com pessoas transgênero (Foto: Divulgação/SES)

O psicólogo afirma que o ambulatório também atende crianças e adolescentes, mas sem o processo de hormonização.

“Damos suporte ao paciente e à família também. Há risco de vulnerabilidade quando a pessoa entra na adolescência, quando acontece alto índice de rompimento familiar por questões como religião. Pretendemos minimizar os problemas que podem acontecer adiante”, relata o coordenador.

A designer de moda Maria Eva Rizzatti, 37, declara ter sofrido muito com bullying tanto na escola quanto na faculdade, mas não desistiu dos estudos por causa do apoio da família. “Eles são maravilhosos. É por eles que resisto.”

Maria Eva passou a frequentar o ambulatório transexualizador de Santa Maria no início de janeiro. Ela usava hormônios de forma perigosa, consultando dicas que encontrava na internet. Eva conta que já gastou R$ 450 em uma consulta particular por acreditar que teria atendimento melhor que no SUS, mas afirma que o preconceito foi o mesmo.

“A primeira coisa que os médicos já mandavam fazer era os exames de HIV e de sífilis. Eu estava com dor de garganta, ele mandava fazer o teste da Aids. Travesti é associada à prostituição, à promiscuidade e a doenças sexualmente transmissíveis.”

Keila concorda. “A trans tem dor de dente, pedem teste de HIV. Quebra o pé, a mesma coisa. Uma vez, numa palestra, uma menina trans perguntou ironicamente se quando ela tiver dor de garganta, precisaria amarrar uma camisinha na garganta para se curar.”

Maria Eva afirma que na vida adulta nunca fez exames de saúde para identificar como os hormônios estavam reagindo no seu corpo. “Nenhum médico me orientou.” Ela afirma que o ambulatório foi uma “bênção”. “Finalmente alguém pensou em nós e sabe como nos tratar. Com esse atendimento acolhedor, me senti muito bem, viva, humana, uma pessoa de verdade.”

Procurado, o Ministério da Saúde afirma em nota que instituiu por meio de portaria a Política Nacional de Saúde Integral LGBT e que ela “apresenta mecanismos para garantir o acesso à rede do SUS”.

O ministério diz, ainda, que a organização da rede pública de saúde local, como agendamento de consultas, exames e organização de filas de espera, é de responsabilidade de estados e municípios e que está sob sua competência o monitoramento das políticas de alta complexidade.

O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, cita o Código de Ética Médica, onde diz que os profissionais devem respeitar os pacientes segundo suas características e que é vedado “tratar o ser humano sem civilidade, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo”. Em caso de queixa contra um médico, diz a nota, o interessado deve procurar o CRM do seu estado.

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