sábado, 21 dezembro 2024

Mudar Lei das Estatais busca só ampliar poder do Congresso, diz coordenador da legislação

Para Sylvio Coelho, que coordenou elaboração do texto no Senado, medida é inócua para deter reajuste de combustíveis 

Sede da Petrobras (Foto: Reprodução / Shutterstock)

Não faz o menor sentido alterar a Lei das Estatais para facilitar mudanças na gestão da Petrobras para reduzir o preço dos combustíveis, como propôs o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL).

A afirmação é do assessor técnico Sylvio Coelho, que coordenou a elaboração dessa legislação no Senado, atuando no gabinete do relator da matéria, o senador Tasso Jereissatti (PSDB-CE).

“A lei não proíbe que uma estatal persiga objetivos de política pública, basta que ela seja compensada por isso”, afirma Coelho. “O que está em jogo não é a preocupação com o preço dos combustíveis, é a ampliação do campo de poder de quem dá as cartas na cena política, inclusive de execução orçamentária. É isso que está em discussão. É isso que interessa.”

Segundo Coelho, que também é coautor de um livro sobre o tema, a ideia de mexer nessa legislação precisa ser avaliada dentro do movimento maior do Congresso, que vem ampliando sua ação sobre outros Poderes e áreas do Estado.

“Essa ideia de alterar a Lei das Estatais é um passo a mais nesse sentido de criar um ambiente para que não haja nenhum controle, em que se busca submissão geral das estatais aos interesses daqueles que controlam o poder, que é o Legislativo. Esse é o pano de fundo”, afirma ele. Leia a seguir, os principais trechos da entrevista dada a Folha de S.Paulo.

PERGUNTA – O sr. foi coordenador técnico da Lei das Estatais no Senado. O que motivou a elaboração dessa lei e quais são os seus principais mecanismos?

SYLVIO COELHO – Primeiramente, temos que considerar o contexto. Naquele momento, a gente vinha de uma sequência de vários escândalos em estatais, em especial na Petrobras. Foi isso abriu espaço para discussão do tema no Congresso Nacional.

Para redigi-la, buscamos as melhores práticas internacionais, em especial o que é preconizado pela OCDE. Consideramos experiências de sucessos em outros países, como Cingapura e Noruega.

Fundamentalmente, essa lei buscou três objetivos. O primeiro deles foi estabelecer um novo padrão de qualidade para a gestão nas empresas estatais. O segundo, fixar um novo marco regulatório para licitações e contratos. Existia toda uma fauna de regulamentos sobre o tema e procuramos estabelecer uma referência, que se distanciasse da lei geral de licitações, a antiga 8.666, e que desse um novo eixo nessa questão.

O terceiro objetivo, talvez o mais importante, era afastar ou reduzir a possibilidade de abuso do poder político nas estatais.

P. – Quais são os itens que tentam fazer essa blindagem contra abusos políticos?

SC – Há fundamentalmente dois. O artigo 17, que disciplina as exigências cabíveis para os indicados pelo controlador para cargos de alta gestão. Estamos falando de cargos em conselho de administração, diretorias, inclusive o de presidente, e no conselho fiscal.

Em relação a outra questão -tentar evitar ou reduzir o risco de abuso político nessas empresas-, é importante destacar o artigo 8º. Nele nós deixamos bem claro que a empresa estatal, quando usada para perseguir objetivos de política pública, deve ser remunerada para tal fim. Então, a lei não proíbe que uma estatal persiga objetivos de política pública, basta que ela seja compensada por isso.

P. – Faz sentido o argumento de que é preciso mudar a Lei das Estatais para poder reduzir o preço de combustíveis na Petrobras?

SC – Não faz absolutamente nenhum sentido. O que está acontecendo é mais um passo no processo de ampliação do poder do Congresso, do Legislativo sobre o Executivo.

Isso começou há cerca de sete anos, especificamente quando estabeleceram na Constituição a obrigatoriedade de execução de emendas individuais de parlamentares e também de bancada.
Na sequência, vieram as transferências especiais, também com execução obrigatória. Elas foram chamadas, com toda ponta e circunstância, de orçamento impositivo, mas na verdade não era orçamento, era imposição ao Executivo.

Aí vimos o advento do RP-9, das emendas de relator, que são um abuso.

As emendas do relator já eram previstas e serviam, fundamentalmente, para fazer ajustes ao Orçamento. Nós trabalhamos com relatores setoriais. Então, o relator geral fazia emendas para realizar pequenos ajustes no conjunto, quando se reuniam os diversos relatórios setoriais. As emendas de relator serviam para isso. De três anos para cá, isso não acontece mais.

Essa ideia de alterar a Lei das Estatais precisa ser considerada dentre desse movimento. É um passo a mais nesse sentido de criar um ambiente para que não haja nenhum controle, em que se busca submissão geral das estatais aos interesses daqueles que controlam o poder, que é o Legislativo. Esse é o pano de fundo.

P. – Então, a revisão da Lei das Estatais pressupõe apenas abrir espaço para volta das indicações políticas?

SC – Não tenho a menor dúvida disso. Se você ler o artigo 17 vai ver que há exigências tanto de natureza acadêmica quanto de experiência profissional para os altos cargos. Nem sempre os governos se sentem confortáveis com isso. Claro, gostariam de fazer as indicações o mais livremente possível. Essas regras atrapalham planos políticos.

Ao invés dos agentes políticos se adaptarem à lei, agora fazem um movimento contrário. Querem alterar a lei para que ela se adapte ao jogo político. Não diria que isso é um passo atrás, mas muitos passos atrás.

Tem reflexos ruins não apenas para as empresas. No momento em que o Brasil ensaia uma candidatura para a OCDE, isso é um contrassenso absoluto, pois vai contra as regras de gestão para estatais previsas pela própria OCDE.

P. – O sr. mencionou que o artigo 8º abre a possibilidade de uso das estatais em política pública.

Então, a ideia de mudar a lei dessas empresas perde mais ainda o sentido?

SC -Poderiam estudar algum tipo de política. Mas nem isso é o melhor caminho para resolver a questão dos combustíveis.

A gente precisa ter isso bem claro. O que está em jogo não é a preocupação com o preço dos combustíveis, é a ampliação do campo de poder de quem dá as cartas na cena política, inclusive de execução orçamentária. É isso que está em discussão. É isso que interessa.

Discutir mudança na Lei das Estatais para reduzir o preço dos combustíveis é fumaça.

P. – A ideia foi lançada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Diante disso, o sr. avalia que ela tem chances de avançar e ser aprovada?

SC – Você está falando com um cenarista. Essa é a minha formação. Não tenho como fazer previsão. Vejo que o cenário na Câmara é um, e no Senado, outro. Mas isso está no campo dos possíveis. Se eu tivesse que fazer uma estimativa trabalhando com a pior probabilidade, eu diria que tem chances de ocorrer, sim.

O que vemos hoje é uma predominância dos interesses que são capitaneados pelo presidente da Câmara sobre aqueles capitaneados por outros líderes, seja do mesmo Poder ou de outros.

RAIO-X
Sylvio Kelsen Coelho, 57

Formado em Relações Internacionais, com mestrado em Ciência Política, ambos pela UnB (Universidade de Brasília), foi coordenador técnico na elaboração da Lei de Governança das Estatais no Senado e coautor do livro “Empresas Estatais – Governança, Compliance, Integridade e Contratações”. Membro de carreira de gestores no Ministério da Economia desde 1998, ocupou cargos executivos e de assessoria nos ministérios do Trabalho e Emprego, Planejamento e na Presidência da República nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Cedido ao Senado, assessorou o senador Francisco Dornelles de 2011 a 2014. Desde 2015, está na assessoria do senador Tasso Jereissati 

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