sexta-feira, 22 novembro 2024

Casal monta escola gratuita para mais de 100 crianças na Grande SP

“Há 18 anos, em parceria com nossos vizinhos, meu marido e eu decidimos criar uma escola comunitária dentro do nosso terreno. No início, eram oito alunos e, hoje, são mais de 100 crianças, de 3 a 6 anos. Alguns estudantes da primeira turma já estão na universidade. Pode ser uma boa pauta para a Folha”.

Era bom demais para ser verdade, e só tinha um jeito de saber se aquele email não era mais uma fake news: ir até o bairro Monte Serrat, na periferia de Itapevi, a 40 quilômetros de São Paulo, uma viagem que termina no meio de matas ainda preservadas e estradinhas esburacadas de terra.

Não é fácil chegar ao Sítio Amacord, onde fica a Escola Apecatu, montada e cuidada pela gaúcha Stela Grisotti, 55, jornalista e documentarista, e por seu marido, o austríaco Rudi Böhm, 71, artista plástico, marceneiro e cozinheiro. Eles moram lá há quase 30 anos numa casa rústica construída com as próprias mãos.

Para chegar nesse fim de mundo, até o GPS se perde, fica sem sinal. Ao final da aventura, eles vêm receber a reportagem, acenando junto ao portão, em meio à algazarra das crianças saindo do turno da manhã, depois do almoço farto e saboroso.

São crianças alegres, bem nutridas e bem vestidas, que fazem lembrar as escolas infantis da Alemanha, geralmente mantidas por igrejas, dessas que no primeiro dia de aula fornecem aos alunos material escolar para o ano inteiro.

Não fosse a pobreza das casas da vizinhança penduradas nos morros desta cidade industrial de 200 mil habitantes, uma das que mais cresce no país, daria para pensar que saímos do Brasil.

A primeira ajuda do poder público municipal para manter a escola só veio sete anos depois de entrar em funcionamento, com todas as despesas até então custeadas pelo casal, com a contribuição da comunidade, que fazia pequenas doações ou prestava serviços voluntários.

Na administração de Ruth Banholzer e do secretário de Educação Edgard Fiúza, em 2007, foi assinado um contrato de comodato em que a prefeitura passou a pagar os funcionários da escola e a fornecer a merenda. O resto fica por conta do casal Böhm e da comunidade do Monte Serrat.

Entre hortas, pomares, bosques, brinquedos de madeira e muitos bichos, Stela e Rudi, que nunca estudaram pedagogia, passam o dia se divertindo com os pequenos, como se fossem todos seus filhos, sabem o nome de todos.

Qual foi o milagre, se os donos deste paraíso não são ricos nem ganharam na Mega-Sena?

COMO TUDO COMEÇOU
Esta é uma longa história que precisa ser contada como foi e porque aconteceu, desde o começo.

Na cozinha da sua casa despojada, ornada com os belos quadros pintados por Rudi, um diretor de arte nascido em Viena, que veio para o Brasil com Hans Donner para trabalhar na Globo, em 1974, Stela começa a lembrar como surgiu a ideia que deu origem à Escola Apecatu.

Depois do almoço, um belo bacalhau, com massa e legumes da horta do sítio, preparado pelo marido, Stela volta no tempo até sua infância em Santa Rosa, perto da fronteira com a Argentina, onde ela cresceu brincando com Xuxa, a antiga “rainha dos baixinhos”, que era sua vizinha e tem a mesma idade.

Filha de um pequeno fabricante de máquinas agrícolas, sócio de uma rádio e político do antigo PMDB, com 17 anos Stela foi embora de Santa Rosa para estudar jornalismo na PUC de Porto Alegre, onde conheceu a turma do Coojornal, uma cooperativa independente de repórteres -entre eles, o premiado Caco Barcelos.

Como o mercado de trabalho era pequeno, ela resolveu ir sozinha para Brasília, na época em que a cidade fervia com o fim da ditadura, as Diretas Já e a agonia de Tancredo Neves. Como repórter do Correio Braziliense, foi parar no Xingu e viajou para o interior do Maranhão de ônibus para fazer matéria sobre trabalho escravo, até descobrir que sua vocação não era o jornalismo, “uma profissão em que tudo é feito com muita pressa”.

Queria mesmo era tempo para fazer com calma documentários e roteiros. Foi parar na TV Globo, em São Paulo, como estagiária e depois editora.

Como roteirista do “Gente que Faz”, programete produzido pela TV1 para o falecido Banco Bamerindus, que passava antes do Jornal Nacional aos sábados, viajou o Brasil inteiro.

“Nesse trabalho conheci projetos educacionais incríveis, como o do Tião Rocha, no Centro de Cultura Popular. Descobri, depois de produzir mais de 200 roteiros, uma coisa incrível: se juntar a força de cada indivíduo com a comunidade, somos capazes de transformar a realidade local”.

Aquilo ficou na cabeça de Stela e apenas começou a se tornar realidade quando a filha do casal, Katharina, fez dois anos.

Ao procurar uma escolinha nas redondezas, ela só conseguiu encontrar uma bem boa em Aldeia da Serra, mas a mensalidade era muito cara. Com aquele dinheiro, disse ela a Rudi, daria para contratar uma professora. Por que não?

Brotou ali o projeto da Apecatu. Pagar uma professora só para a filha, no entanto, seria um desperdício, pensaram os dois, olhando para as outras crianças que vinham brincar no seu sítio.

Logo o grande galpão montado pelo marido para abrigar seu ateliê, com pé direito bem alto, seria transformado em sala de aula para oito crianças. A esta altura, Rudi já tinha vendido sua produtora, a Ilimitada Ltda, e Stela deixou de procurar empregos.

Depois de comprar, “por uma mixaria”, um terreno abandonado de 44 mil m2, ocupado por um lixão, no ermo da periferia de Itapevi, eles já tinham mudado radicalmente suas vidas. Não aguentavam mais São Paulo.

Limparam o terreno, de onde tiraram 19 caçambas de lixo, e foram morar numa casa de pau a pique. Lá ficaram albergados por cinco anos, até a casa de alvenaria ficar pronta. No terreno, só havia um imenso bambuzal. E logo começaram a plantar todo tipo de árvore, fizeram o pomar e a horta.

Na bem equipada carpintaria, o marido dela montou todos os móveis da escola, que não parou mais de crescer, até passar dos 100 alunos este ano. Formado pela Academia de Artes de Viena, Rudi gosta de fazer tudo com as próprias mãos, até o forno a lenha do quintal.

No começo, contaram com a orientação da pedagoga Ivonilde Milan, da Escola da Vila. Há 14 anos, a diretora da escola é Simone Almeida, jovem pedagoga que chegou bem tímida só para dar aulas e logo se tornaria responsável pela interlocução entre o casal, as professoras Gilmara, Rosana e Rosângela, os funcionários, a Secretaria Municipal de Educação e os pais dos alunos.

“Buscar o desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento das potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas para formar crianças criativas, críticas e saudáveis”: assim a Apecatu define sua metodologia de ensino.

Os eixos do trabalho são movimento, artes visuais, música, linguagem oral e escrita, natureza, sociedade e matemática, de acordo com as propostas do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil.

Com o tempo, foi montada uma biblioteca com centenas de livros infantis. Uma das atividades mais importantes do dia é a roda de histórias. Às sextas-feiras, os alunos podem levar um livro para casa e os pais são orientados a ler as histórias para as crianças nos finais de semana, uma forma de estimular a participação da família na educação das crianças.

Stela gosta do que faz e se empolga ao falar do seu trabalho: “Abrir as portas da sua casa e receber todos os dias mais de 100 crianças da vizinhança, além de toda a importância socioeducativa, tem um lado mágico, forte, transformador, que nenhuma palavra ou expressão é capaz de traduzir. Um trabalho às vezes duro, difícil, mas que vale muito a pena”.

Antes de receber a ajuda da prefeitura, que também deu isenção de IPTU à escola, Stela teve uma crise de estresse que quase a fez desistir do projeto. Hoje, dá risada quando lembra da desconfiança que havia no começo, com as pessoas lhe perguntando por que estava fazendo aquilo.

“Perguntavam se eu era de alguma igreja, se queria ser candidata a vereadora, essas coisas. E eu só respondia: ‘A gente faz isso porque acha importante’”.

Com a crise econômica, as doações minguaram, muitos pais ficaram desempregados e passaram a ajudar menos na manutenção da escola. Mesmo assim, neste Natal, um doador anônimo doou bolas de futebol oficiais e um kit completo de higiene pessoal para cada criança.

Nas poucas horas livres, o casal ainda faz documentários. Um conta a vida de Apolônio de Carvalho e outro é sobre o garimpo de Serra Pelada. Além de pintar, Rudi também escreve livros infantis. Entre eles, editou “O Livro de Pintura do Papai” e “Os 422 Soldadinhos de Chumbo do Senhor General”.

Em oposição ao Escola sem Partido, eles defendem a Escola com Humanidade, com toda liberdade para alunos e professores, e só não abrem mão da sua autonomia e independência.

Nas voltas que a vida dá, Katharina, a filha que deu origem à escola, hoje estuda oceanografia na USP, a exemplo de outros alunos que passaram pela Apecatu e já estão na universidade.

“A vida também tem que ser uma festa”, resume Stela, ao ver Rudi dando uma aula de culinária para as crianças, com chapéu de chef e tudo, todo mundo fazendo a maior farra.

Para quem quiser conhecer de perto esta experiência, vale a pena ir na hora do almoço para ver a felicidade das crianças reunidas em torno da enorme mesa construída por Rudi, onde todo dia parece que é Natal.

Não, não era uma fake news. A Apecatu (“bom caminho” em tupi-guarani) existe.

Com texto de RICARDO KOTSCHO/Folhapress

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