Durante o verão, não choveu o suficiente para encher reservatórios de importantes usinas hidrelétricas no Sudeste e no Centro-Oeste do país
O fenômeno natural La Niña ajuda a entender, mas não explica toda a crise hídrica que ameaça o setor elétrico no país, indicam especialistas. Segundo eles, a escassez de chuvas também pode ser associada a questões como a mudança climática provocada pelo aquecimento global e até o desmatamento na Amazônia.
Durante o verão, não choveu o suficiente para encher reservatórios de importantes usinas hidrelétricas no Sudeste e no Centro-Oeste do país. A situação exige o acionamento de térmicas, que custam mais caro e elevam o preço da energia para os brasileiros.
O La Niña é visto como um dos motivos da crise porque afeta a distribuição de chuvas. No país, esse fenômeno costuma provocar estiagem no Centro-Sul, justamente onde estão os principais reservatórios para geração de energia.
“O fenômeno é causado pelo resfriamento das águas superficiais do Pacífico Equatorial, na região da costa do Peru. Quando as águas estão mais frias do que o normal, geram uma alteração na circulação de ventos e umidade. Na região Centro-Sul do Brasil, a tendência é de estiagem”, sinaliza Renata Libonati, professora do Departamento de Meteorologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Renata também vê, na crise hídrica, reflexos do desmatamento da Amazônia. É que a região, lembra a professora, exerce papel importante em fluxos de umidade que levam chuvas para Centro-Oeste e Sudeste. Esses processos ocorrem por meio dos chamados rios voadores da Amazônia.
“A floresta funciona como uma bomba que suga a umidade do oceano Atlântico. Essa umidade entra na Amazônia, causando chuva. A floresta acaba gerando mais umidade, que é carregada por ventos até a Cordilheira dos Andes. A umidade bate na cordilheira, faz uma espécie de curva e volta para o Centro-Sul. Estudos demonstram que o grande desmatamento altera essa fonte de umidade”, diz.
De janeiro a maio, os avisos de desmatamento na Amazônia Legal alcançaram área de 2.547,7 km², alta de 25% em relação a igual período do ano passado. Os dados aparecem no sistema de monitoramento Deter, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Levantamento do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) também indica piora no quadro. Conforme o instituto, uma área de floresta quase do tamanho do município do Rio de Janeiro foi desmatada apenas em maio. O Imazon detectou 1.125 km² de desmatamento no período, maior saldo da série histórica para o mês nos últimos dez anos.
Paulo Artaxo, estudioso da Amazônia há 37 anos e doutor em física atmosférica pela USP (Universidade de São Paulo), avalia que as perdas registradas na floresta podem ter impacto na seca deste ano, assim como o La Niña. Outro possível fator para a escassez de chuvas é o aquecimento global, lembra o pesquisador.
“Todos os modelos climáticos preveem redução nas precipitações com o aumento da temperatura no Brasil central. O aumento da temperatura altera a circulação atmosférica. Isso, por sua vez, altera as trajetórias de massas de ar que poderiam trazer vapor de água”, diz o pesquisador.
“Com a elevação da temperatura, há aumento da incidência de eventos extremos, como grandes cheias e grandes secas”, acrescenta.
O meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral de operações e modelagem do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), também elenca mais de um fator para explicar as dificuldades hídricas. Segundo ele, o Brasil registra chuvas abaixo da média desde 2014. Neste ano, diz, o quadro foi agravado pelo impacto do La Niña.
Seluchi concorda com a ideia de que o aquecimento global e o desmatamento de diferentes biomas podem agravar a situação.
“A chuva precisa de umidade para ocorrer. Se você modifica o solo, substitui florestas, desmata nascentes de rios, tudo isso causa mudança de umidade. Não há como dizer qual o percentual de cada fator nesse processo [crise hídrica]. Há uma combinação de coisas”, analisa o meteorologista do Cemaden, órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
A doutora em meteorologia e professora da Unifei (Universidade Federal de Itajubá) Michelle Simões Reboita diz que as projeções apontam aumento nos períodos secos sobre a região da bacia do rio Paraná.
A região, conhecida como a caixa d’água do setor elétrico pela grande quantidade de hidrelétricas com reservatórios, viveu no último ano a pior seca da sua história e está hoje com cerca de 30% de sua capacidade de armazenamento de energia.
“A gente tem observado que os ventos que vão do oceano para o norte do Brasil vão enfraquecer no clima futuro. Se enfraquecem, levam menos umidade para o continente”, diz ela. “Com a Amazônia mais seca, não tem esse transporte de umidade, que conhecemos como rios voadores. E isso impacta o Sudeste.”
Com a perspectiva de menores chuvas, a operação do setor elétrico terá que mudar, diz a doutoranda em Engenharia Elétrica pela Unifei Cássia Akemi Castro Kuki. As chamadas energias renováveis intermitentes, como eólica e solar, têm que ganhar mais espaço, substituindo o papel hoje feito pelas hidrelétricas.
Ao invés de garantir a geração de energia na base, as hidrelétricas passariam a atuar como fontes complementares, gerando energia para cobrir a parte da demanda que não pode ser atendida por eólicas e solares nos períodos de menos vento e sol.
Nesse sentido, ela diz que a rede de transmissão de energia do país precisa de ampliações, para permitir maior transferência de eletricidade entre as regiões. A fonte eólica, por exemplo, tem grande potencial no Nordeste e no Sul.
Mesma visão tem o ex-presidente do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) Luiz Eduardo Barata. Para ele, com a expansão das energias renováveis, os reservatórios das hidrelétricas tendem a voltar a encher -a última vez em que terminaram o período de chuvas acima dos 80% foi em 2011.
A perspectiva de menos água é foco de diversos estudos no setor, inclusive considerando que a redução dos reservatórios deve ampliar os conflitos pelo uso das águas e, consequentemente, restrições à operação de hidrelétricas.
A EPE (Empresa de Planejamento Energético) considera esse um dos principais desafios no planejamento futuro da expansão do setor, já que as projeções dependem de uma perspectiva realista de quanta energia as hidrelétricas poderão gerar no futuro.