sábado, 20 abril 2024

Depois de perder a perna com linha cortante de pipa, garoto sonha em voltar ao futebol

Regina Alves Nascimento, 45, perdeu as contas de quantas vezes recebeu ligações da diretora da escola do filho, Gabriel Alves, 15, avisando que ele tinha fugido da aula para jogar futebol durante a educação física de outras turmas. Se ele tivesse nota por jogar bola, diz ela, seria o melhor aluno da escola.

Apaixonado pelo jogo desde pequeno, Gabriel só pensava em futebol quando teve que tomar a decisão mais difícil da sua vida no último dia 24. Depois de um acidente com linha chilena –cortante, usadas ilegalmente em pipas–, precisava dar o sim para a amputação da perna esquerda.

Cinco dias antes, num sábado de manhã de sol, ele saiu do futebol e foi cortar o cabelo com um amigo. Enquanto o amigo era atendido, reconheceu uma linha chilena esticada na rua. Gabriel já tinha visto aquele tipo de fio enroscado em pipas que caíam perto de sua casa, em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte, que vinham de longe.

Fabricada industrialmente com pó de quartzo e óxido de alumínio, a linha chilena corta até quatro vezes mais que o cerol, de fabricação mais caseira. Gabriel quis tirá-la da via para evitar que alguém se machucasse. Mas, enquanto ele tentava, a linha enroscou em um ônibus que passava e cortou suas pernas.

O menino conta que pediu socorro, viu uma mulher passando que não parou. O corte foi profundo e chegou aos ossos. Com a perda de sangue, ele apagou por um minuto. Quando acordou estava sendo atendido e colocado na ambulância.

O acidente ocorreu por volta de 11h45. Às 11h58, o telefone de Regina tocou no salão onde ela fazia as unhas com a notícia de que o filho estava no hospital e que era grave. Entre sábado e domingo, ele passou por duas cirurgias. Na quarta-feira, os médicos avisaram que, para evitar uma infecção generalizada, Gabriel precisaria amputar a perna.

Os pais entendiam que era a opção mais segura, mas ficaram surpresos quando ele concordou. “Foi bem triste. Não esperava por aquilo, mas com a explicação dos médicos, da minha família, aceitei”, diz Gabriel.  Com ventos mais fortes, acidentes do tipo são mais comuns nesta época do ano. Segundo a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), o Hospital João 23, em Belo Horizonte, maior pronto-socorro do estado, registrou 23 casos de acidentes com cerol/linha chilena até julho deste ano –13 deles em junho. Em 2018, foram 31 casos no ano todo.

Na semana seguinte ao caso de Gabriel, dois outros jovens foram feridos por linha chilena em cidades mineiras –um em Visconde do Rio Branco, que entrou em coma e também perdeu uma perna, outro em Varginha. Na terça (30), a Polícia Militar fechou uma fábrica do produto em Três Corações.

O uso da linhas cortantes, como a chilena, é proibido por lei estadual em Minas Gerais desde 2002, e por lei municipal em Betim desde 2017. Uma lei federal de 1990 também define a venda ou exposição de linhas como o cerol como crime, prevendo multa e detenção de dois a cinco anos.

Gabriel e a família resolveram fazer do combate ao uso das linhas uma causa. “Às vezes, a pessoa não tem noção, não sabe que está causando dor em famílias que perdem parentes ou que deixa sequelas. Igual ao meu filho, essa linha deixou sequelas na vida dele”, diz Regina.

Depois do acidente, o menino passou a receber mensagens de apoio de todos os lados, inclusive de jogadores. Entre eles, o goleiro Jackson Follman, que também perdeu parte da perna na queda do avião da Chapecoense, em 2016; o atacante Luan, do Atlético-MG, time de coração de Gabriel, e Fred, jogador do rival, Cruzeiro.

Agora, a casa onde Gabriel vive com os pais e os quatro irmãos tem um entra e sai constante de visitas. Lá, ele recebeu o lateral Patric, do Galo, e representantes do Betim Futebol, que o convidaram para acompanhar a comissão técnica do time profissional.

Gabriel já havia jogado na AMDH, time que deu origem ao Betim, e faria teste para voltar em poucos dias.  Ainda no hospital, ele conheceu Ranieri Alves, 39, que perdeu a perna depois de ser atropelado em um viaduto em BH em 2004. O empresário, que visita hospitais para conversar com pessoas que sofreram amputações, é atleta em corridas de rua e competições de ciclismo.

Com a prótese que usa para correr, ele mostrou a Gabriel quão alto consegue pular e seus vídeos praticando esportes. “Me propus a ajudar ele até o dia que ele estiver correndo na rua, tentando me alcançar”, diz.  A apresentadora e modelo mineira Paola Antonini, que também perdeu parte da perna em um acidente de carro, libou Gabriel ao médico que está preparando a prótese para ele. A previsão é que ele retire os pontos no dia 7 e possa começar a se preparar para a prótese. Em casa, seguindo as orientações, Gabriel se movimenta com andador e já tem as muletas separadas.

“Estou ansioso para poder jogar bola, pular, correr, tudo”, diz ele, fazendo planos para o que fará a seguir. Até já voltou a sonhar em vestir a camisa da seleção brasileira, agora, com o time paraolímpico. “Não acabou nada, só mudou o percurso, porque Deus tem um novo tempo”.

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