A quebra de sigilo autorizada pela Justiça na investigação do Ministério Público do Rio sobre Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) atingiu pessoas que nem sequer foram nomeadas pelo senador e não tiveram nenhuma transação financeira com o ex-assessor dele Fabrício Queiroz.
A peça do Ministério Público também atribui equivocadamente ao gabinete de Flávio uma servidora da Assembleia que acumulou outro emprego e apresenta falhas ao relatar suspeitas contra Queiroz, ex-PM, espécie de chefe de gabinete de Flávio e pivô da atual investigação.
O pedido de quebra dos sigilos foi o primeiro passo judicial da investigação após um relatório do governo federal ter apontado, há mais de 500 dias, movimentação suspeita de R$ 1,2 milhão na conta de Queiroz, de janeiro de 2016 a janeiro de 2017. Além do volume movimentado, chamou a atenção a forma com que as operações se davam: saques e depósitos em dinheiro vivo. As transações ocorriam em data próxima do pagamento de servidores da Assembleia, onde Flávio exerceu o mandato de deputado por 16 anos (2003-2018) até ser eleito senador.
Queiroz disse que recebia parte dos valores dos salários dos colegas de gabinete e que usava esse dinheiro para remunerar assessores informais de Flávio, sem o conhecimento do então deputado. Em razão disso, o Ministério Público afirmou ser necessária a quebra de sigilo de todos os ex-servidores lotados no gabinete de Flávio de 2007 a 2018, período em que Queiroz esteve empregado lá.
A lista de 86 pessoas apresentada pela Promotoria incluiu, porém, ao menos três que foram exoneradas por Flávio da liderança do PSL na Assembleia do Rio de Janeiro menos de um mês depois de o então deputado estadual ter assumido o cargo.
Celione da Cruz, Jéssica Machado Braga e Mariana Malta Monteiro da Silva haviam sido nomeados pelo antecessor de Flávio no posto, o ex-deputado Dr. Gotardo, ainda em 2017. O filho do presidente só assumiu a liderança em 2018, exonerando os três e colocando no lugar pessoas de sua confiança.
Ex-vereador de Volta Redonda, Celione diz que nunca teve nenhuma relação política com Flávio. “Eu não tenho nada. Sou pobre. Quando virem minha situação financeira, vão cair para trás”, disse ele, sobre a quebra do sigilo. Jéssica é filha do ex-secretário de Obras Hudson Braga, acusado de corrupção no esquema do ex-governador Sérgio Cabral (MDB). O advogado Roberto Pagliuso, que defende a família, disse que ela nunca teve relação com Flávio. O mesmo afirmou Mariana.
A peça não indica a fonte usada pela Promotoria para indicar os alvos que vincula ao gabinete de Flávio. Também não informa se identificou alguma relação política entre os três e o senador. Em relação a Queiroz, o Ministério Público levanta a suspeita de que, em vez de repassar a assessores informais de Flávio a parte do salário que recebia de colegas do gabinete, como diz sua defesa, o ex-assessor se apropriava de uma parcela desses recursos.
Para justificar essa tese, mostra relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) segundo o qual ele pagou R$ 101,5 mil em contas pessoais. Esse valor, diz a Promotoria, supera a remuneração dele na Assembleia, de R$ 81,8 mil, indicada no documento do Legislativo.
Os promotores, contudo, omitem que o mesmo relatório afirma que Queiroz tem outra fonte de renda, além da Assembleia. No caso, a Polícia Militar. O documento também diz que ele tem uma renda calculada em R$ 23 mil por mês. Tal remuneração, assim, supera os R$ 81,8 mil anuais indicados na peça. Na peça, há ainda equívocos na informação sobre saques realizados por Queiroz.
O pedido de quebra de sigilo informa que as retiradas de janeiro de 2017 a março de 2017 somaram R$ 324.774 –exatamente o mesmo valor de janeiro de 2016 a janeiro de 2017. Porém documento do Coaf mostra que, no primeiro trimestre de 2017, o ex-assessor de Flávio sacou R$ 86 mil. Há erro também na indicação dos saques no período de novembro de 2017 a junho de 2018. Os promotores apontam R$ 190 mil, mas esse valor se refere apenas aos saques fracionados, de pequeno valor. No total, foram R$ 262.735 retiradas em espécie de novembro de 2017 a abril de 2018 –e não junho, como escrito.
Ao apontar possíveis funcionários fantasmas no gabinete de Flávio, o Ministério Público comete outro erro. O órgão, ao utilizar dados banco de dados do governo federal sobre empregados (Caged), indica três pessoas que acumulavam tanto um cargo com o deputado como um trabalho formal fora da Assembleia.
Um dos casos citados é o de Luiza Souza Paes. Ela ingressou na Globo Comunicação e Participações em 2 de janeiro de 2017, segundo o Caged. Por 45 dias (até 14 de fevereiro), ela também esteve empregada na Assembleia. Mas, diferentemente do que diz a Promotoria, ela não tinha cargo no gabinete de Flávio nessa época, mas sim na TV Alerj.
Luiza trabalhou no gabinete de Flávio de agosto de 2011 a abril de 2012, quando foi para a TV Alerj.
Ela também fez transferências bancárias para Queiroz. Por esses dois motivos, teve o sigilo quebrado. Procurado para comentar esses pontos levantados pela reportagem, o Ministério Público do Rio afirmou que os promotores não comentam “investigação em curso, em especial no que tange a casos sob sigilo legal”. A decisão de quebra de sigilo, do juiz Flávio Itabaiana, tem sido criticada por advogados do caso por não ter individualizado os motivos para a medida.
Em um parágrafo, ele afirma apenas adotar as razões expostas pelo Ministério Público para deferir a medida. A falta de justificativas individualizadas é uma das razões apresentadas em habeas corpus pela defesa de Queiroz na tentativa de anular a quebra.
“O juízo decretou a quebra do sigilo bancário e fiscal de quase uma centena de pessoas por ser ‘importante para a instrução do procedimento investigatório criminal’, sem nada mais a dizer, sem avaliar se as pessoas alcançadas tinham ou tem qualquer mínima relação com a investigação”, diz o habeas corpus do advogado Paulo Klein, que defende Queiroz.
CATIA SEABRA E ITALO NOGUEIRA