quinta-feira, 26 dezembro 2024

Um em cada 25 presos no Rio denuncia em audiência de custódia que foi torturado

A cada 25 presos que passam por audiências de custódia no Rio de Janeiro, um denuncia que foi torturado. Um relatório produzido pela Defensoria Pública do Estado, divulgado nesta sexta-feira (2), mostra que o núcleo de Direitos Humanos recebeu 931 registros de tortura entre agosto de 2018 e maio de 2019. Havia 153 menores de idade entre as supostas vítimas dos abusos.

A maior parte dos casos (727) foi comunicada nas audiências de custódia, por onde passaram, no total, 17.020 presos no mesmo período.  Essas audiências foram implementadas há cerca de quatro anos, com dois objetivos principais: permitir que um juiz analise rapidamente a necessidade e a legalidade da prisão em flagrante e comunicar eventuais ocorrências de tortura.

Os demais relatos foram feitos aos núcleos de Audiência de Apresentação e do Sistema Penitenciário. A maior parte dos casos de tortura, 760, teria ocorrido no local onde a prisão foi efetuada. O professor da Uerj e pesquisador do LAV (Laboratório de Análise da Violência) Eduardo Ribeiro acredita que as torturas tenham ocorrido mais vezes do que foram denunciadas, devido à resistência dos presos em narrar este tipo de crime.

Ele também afirma que, isolado, o número de casos pode até parecer baixo, mas que, na comparação com a população geral, evidencia-se a gravidade da situação. “Há uma provável incidência muito superior [de tortura] entre pessoas que deveriam ter sua integridade física protegida pelo Estado.” Ribeiro ressalta que os dados indicam que as audiências de custódia falham ao não conseguirem inibir os abusos. “Quando se promove medida do tipo, espera-se que o ator seja dissuadido pela possibilidade de punição”, afirma.

Ele diz que uma das razões para a continuidade das agressões é a certeza da impunidade. O professor argumenta que há um aparato de suavização da atuação policial por parte de governantes linha-dura, como o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e o governador Wilson Witzel (PSC). “Existe toda uma cultura que evita que o policial militar seja responsabilizado, o que dá muito respaldo para que ele não se preocupe quando comete este tipo de crime.”

As agressões físicas e psicológicas narradas pelos presos variam entre chutes e socos, coronhadas, arma na cabeça, ameaça de morte, choques, enforcamento, madeiradas e pisões. A título de comparação, nos seis primeiros meses de implementação das audiências de custódia em São Paulo, em 2015, o Tribunal de Justiça do estado identificou que 277 presos haviam sido torturados, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

De acordo com o levantamento da Defensoria do Rio, entre os 835 presos que identificaram o agressor, 687 indicaram policiais militares como os autores. Em seguida, aparecem policiais civis (60), populares (29), guardas municipais (15), agentes penitenciários (15) e o Exército (14). Uma das denúncias mais graves de tortura envolvendo o Exército ocorreu em agosto do ano passado, em meio a intervenção federal no Rio de Janeiro.

Durante ação militar realizada na Vila da Penha, zona norte da cidade, sete homens e um adolescente de 16 anos foram detidos com armas e drogas. À Justiça e à Defensoria Pública do estado, todos afirmaram ter sido agredidos pelos militares, quatro deles com pedaços de pau e cabos elétricos. Alguns dos oito presos relataram que as agressões começaram ainda a caminho da Vila Militar, no jipe do Exército, com o uso de spray e pimenta e de tasers -armamentos não letais que aplicam choques elétricos. Também teriam sido feitas ameaças com um saco plástico e um cabo de vassoura.

O Exército abriu um IPM (Inquérito Policial Militar) para apurar as denúncias, após determinação da Justiça. A juíza da audiência de custódia escreveu que os presos estavam lesionados, com marcas de balas de borracha e outros ferimentos.  O inquérito acabou arquivado a pedido do Ministério Público Militar. A comunicação do Comando Militar do Leste disse à reportagem que só emitirá um posicionamento sobre o caso depois que tiver acesso ao relatório da Defensoria.

Em nota, a Polícia Militar respondeu que não compactua com qualquer desvio de conduta ou excessos por parte de seus agentes. A corporação disse que sua Corregedoria apura com “extremo rigor” todas as denúncias.  A reportagem conversou com a mãe de um preso que contou ter sido torturado por policiais militares. Ela não quis se identificar por motivos de segurança. “Não tenho sossego nem para dormir, tenho medo de entrarem na minha casa”, disse.

A mãe afirmou que testemunhou quando PMs espancaram seu filho e o ameaçaram de morte. Ela afirmou que os policiais tentaram coagi-la durante a audiência de custódia e que prometeram que ainda o matariam. A Lei da Tortura, sancionada em 1997 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, define tortura como o constrangimento de alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação; provocar ação ou omissão de natureza criminosa; em razão de discriminação racial ou religiosa.

Também se considera tortura a submissão de alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental.  Em julho, o governador Wilson Witzel (PSC) defendeu na Câmara dos Deputados mudanças nas audiências de custódia. Ele participou de discussão sobre um projeto de autoria do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) que visa anular este tipo de audiência.

Na ocasião, Witzel afirmou que a prática de tortura é uma exceção e que, em geral, se adota a cultura de liberar o preso como regra nestas audiências. O defensor público Fábio Amado, que coordena o núcleo de Direitos Humanos da Defensoria, diz à reportagem que os dados são “estarrecedores e alarmantes” e que o estudo reafirma a importância das audiências de custódia.

“Não podemos continuar sustentando que a tortura existiu historicamente, num período, e não mais existe. Infelizmente, é mais usual, corriqueira, do que as pessoas imaginam.” Ele defende a necessidade de atuação em duas frentes: a da prevenção e a da responsabilização dos envolvidos. Para isso, diz ser essencial o diálogo entre Defensoria, Ministério Público, Poder Judiciário e órgãos de segurança.

O levantamento da Defensoria identificou 574 processos judiciais a partir das 727 denúncias de tortura feitas ao órgão no contexto da audiência de custódia. Em 85% dos processos, o juiz se manifestou sobre as agressões alegadas pelo réu.  Na maior parte das vezes, o magistrado enviou cópias para órgãos com atribuição para apurar o ocorrido e pediu a realização de exame de corpo de delito.

Amado sugere que o Ministério Público desenvolva uma pesquisa para acompanhar os inquéritos gerados a partir das denúncias de tortura levadas aos juízes das audiências de custódia.  Quando recebe as cópias do caso, o promotor pode arquivar, pedir novas diligências ou oferecer a denúncia. Com um levantamento do tipo, seria possível verificar quantos autores foram responsabilizados e quais instituições e pessoas aparecem recorrentemente como agressores.

ANA LUIZA ALBUQUERQUE

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