Temos repetido alguns mantras, como sociedade, diante do novo coronavírus: que se tratava de uma ameaça inédita; que estávamos nos instruindo conforme tudo acontecia; e, portanto, era justificável cometer erros.
Um livro lançado nessa sexta (9) derruba essas ideias e mostra que tivemos, sim, a chance de aprender alguma coisa com o passado, mas aparentemente optamos por abrir mão disso. Trata-se de “A Bailarina da Morte: A Gripe Espanhola no Brasil”, das historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling.
Com um levantamento minucioso, as autoras contam a história do vírus que assolou a humanidade de 1918 a 1920 e que nesse intervalo, cujo período mais crítico durou 90 dias, matou entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas no mundo (as estatísticas da época eram imprecisas), superando o total de vítimas da Primeira Guerra (1914-1918).
No Brasil, então com 29 milhões de habitantes (13,8% do contingente atual), pelo menos 35 mil morreram da doença.
Nesse estudo de quase 400 páginas, o que mais chama atenção é como os enredos se repetem apesar de estarem separados por um século. Há cem anos, diante de uma epidemia violenta e assustadora, também houve descrença, negação e até alegações de remédios supostamente milagrosos.
“De tempos em tempos, a humanidade sofre com episódios epidêmicos, e de tempos em tempos a humanidade se esquece deles”, diz Lilia Schwarcz. “Quando a epidemia começa a baixar, a primeira atitude é lançar mão do esquecimento, que é irmão da morte. A gente deveria levar alguma lição disso.”
“A Bailarina da Morte” mostra que a gripe espanhola chegou ao Brasil em setembro de 1918. Sua primeira parada foi no Recife, e de lá se espalhou pelo país. O nome pelo qual a doença ficou conhecida vem do fato de que o alerta inicial sobre sua gravidade veio da Espanha, país que não censurou a informação, já que não tinha interesses em relação à chamada Grande Guerra.
“A moléstia foi chamada também de dançarina porque bailava e se disseminava em larga escala e porque o vírus deslizava com facilidade para o interior das células do hospedeiro e se alterava ao longo do tempo e nos vários lugares em que incidia”, descreve o livro.
Em diversas passagens, a publicação também menciona a maneira fulminante com que a doença atuava: “[…] quando seriamente infectadas, [as vítimas] sangravam pelo nariz, pelos ouvidos, pela boca, pelos olhos, pela vagina (no caso das mulheres); por qualquer orifício do corpo”.
No Rio de Janeiro, muitos doentes recorriam à homeopatia, que se popularizou à época, e a um remédio chamado Grippina. No resto do país, vendia-se a promessa da cura com medicamentos como Quinado Constantino, Mentholatum, Creolisol e Pílulas Sudoríficas de Luiz Carlos.
As historiadoras também encontraram propagandas de cloroquina, produzida à época por algumas farmácias, como tratamento contra a gripe espanhola.
“Mas a primeira opção era o sal de quinino, que era utilizado para malária e hoje compõe a nossa água tônica. Já na época ele era desaconselhado, porque as pessoas descreviam que dava palpitação. Ainda rolou muita lenda urbana sobre gente que tomou, desmaiou, veio um carroceiro e a pessoa foi enterrada viva”, afirma Schwarcz.
Os paralelos da gripe espanhola com o novo coronavírus também se estendem às políticas de isolamento social. Com algumas variações de estado para estado, de forma geral a reabertura contemplou primeiro o comércio.
“Os teatros demoraram a reabrir, as igrejas demoraram mais do que agora. O campeonato de futebol, por exemplo, voltou antes no Rio de Janeiro, onde as praias e ruas também ficaram cheias. Em São Paulo, tentaram encompridar os feriados. As medidas são muito semelhantes”, diz Schwarcz.
Ela conta que, quando chegou ao Brasil, a gripe espanhola era anunciada como “democrática”. No entanto, rapidamente mostrou que “tinha raça, cor e endereço”. “As populações negras no Rio, os imigrantes em São Paulo, e os indígenas no Norte e no Centro-Oeste foram os mais afetados. Vários grupos indígenas desapareceram.”
O livro mostra, ainda, que, em 1918, o regime republicano não havia criado uma política consistente na área de saúde nem uma agenda de saúde pública permanente voltada para minorias. Isso, no entanto, não teria relação com 2020, de acordo com Heloisa Starling.
“A República não constrói um sistema adequado de saúde porque isso vai levar tempo. Há o processo de expansão em 1891, mas não tem um quadro de direitos. Isso vai ser feito ao longo da história. Hoje, não se está construindo nada, está se destruindo”, afirma.
“Hoje você tem o direito, tem a ferramenta, que é o SUS, e você a destrói. Há uma diferença enorme”, diz Starling. “É como se estivéssemos voltando no tempo para antes da República e da luta por direitos, com setores da população brasileira absolutamente indiferentes à morte de 150 mil brasileiros. Isso me assusta muito.”
“Não sabemos lidar com a morte, e isso trará muitos traumas para o Brasil”, afirma Schwarcz. “Temos um presidente incapaz de lidar com o luto coletivo. Não há uma palavra ou um gesto, a não ser os de desdém.”
Starling lembra que “Albert Camus fala que tudo que se pode tirar da peste é memória e conhecimento”.
“Nós perdemos a lição da espanhola. Não pegamos nem a memória nem o conhecimento. Estamos repetindo a história, só que, naquele momento, as pessoas não se aviltaram, e, agora, estão se aviltando.”