Por haver apenas times masculinos na competição, a garota não pode treinar e disputar os campeonatos municipais
Como explicar para uma criança que ela não pode participar de um campeonato pelo fato de ser menina? Essa foi a motivação que levou uma mãe, a estudante de música Laís Matias, 31, a criar um abaixo-assinado na tentativa de mudar o regulamento do campeonato estadual de futsal sub-9 do Espírito Santo, disputado por meninos.
Laís é mãe de Laurinha, que completou oito anos no último dia 11 e joga futsal no Cruzeiro da Ilha de Santa Maria, em Vitória, desde os quatro. Atualmente, há apenas times masculinos na competição. E, apesar de a garota treinar e disputar campeonatos municipais junto com os garotos, foi barrada no nível estadual.
“Ela não está sozinha. Existe interesse das meninas em jogar futebol de salão ou de campo, mas falta estímulo. Todas devem ter opção de escolha. Nenhum menino passou por isso, mas as meninas têm que aceitar e engolir seco? Com esse abaixo-assinado, quero dar voz às meninas que amam futebol”, afirma Laís.
A mãe conta que, após a criação da petição, começou a receber mensagens de apoio de familiares de meninas que passaram pela mesma situação. No momento da publicação deste texto, havia quase 6.700 assinaturas. A meta é chegar a 7.500 apoiadores até 31 de janeiro e apresentar o documento a entidades ligadas ao esporte.
Laís não é a primeira na luta por igualdade de oportunidades no futebol. Há outros pais pelo Brasil em campanha para que todos, independentemente do gênero, tenham o direito de jogar.
Ela explica que o primeiro desafio foi encontrar uma escolinha de futebol que aceitasse treinar a filha junto com meninos, aos quatro anos. A única escola que abriu as portas para Laurinha à época foi a do Cruzeiro da Ilha de Santa Maria, time que a garota defende até o momento.
A estudante de música relata a frustração de Laurinha ao receber a notícia de que, apesar de ter ajudado o time a passar para a fase estadual, não poderia representá-lo com os garotos na competição que ocorreu em novembro do ano passado.
“Quando ela completou sete anos, o treinador a convocou para o time principal. Porém tive que dizer que ela não poderia participar porque era menina. Como você explica isso? Ela chorou muito, disse que não entendia: ‘Estou sozinha? Sou a única menina que quer jogar?’.”
Segundo a mãe, a criança dorme abraçada com a bola, anda com as medalhas conquistadas durante sua breve trajetória no misto do Cruzeiro da Ilha de Santa Maria pela casa. “É algo dela, não é forçado. Ela acompanha os jogos das meninas do futebol. Fala que ser como a Marta e a Formiga.”
Para Renata Mendonça, cofundadora do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte e colunista da Folha, o ideal seria que houvesse mais meninas para competir, processo que leva tempo.
“É triste pensar que, em 2022, estamos falando de uma história parecida com a que viveu a Marta na década de 1990. Ela poderia ter desistido, a melhor jogadora de todos os tempos. E tenho convicção de que muitas Martas se perderam diante das portas fechadas. Quantos talentos se perderam por falta de incentivo?”
“Durante este mês de janeiro, por exemplo, assistimos à Copa São Paulo de Futebol Júnior masculina e o surgimento de tantos talentos. Imagine se a gente tivesse a mesma vitrine em competições oficiais de base no futebol feminino. Então, não há esse interesse massivo, não temos uma Copinha televisionada para as meninas se verem em outras jogadoras, sonharem desde crianças com o futebol”, afirma Renata.
No futebol de campo, Laura Pigatin, hoje com 17 anos, de São Carlos (SP), teve que recorrer também a um abaixo-assinado quando tinha 12 para participar de um campeonato estadual com meninos no sub-13. O manifesto teve a adesão de 11.432 pessoas.
“Eu jogava com meninos desde os quatro. Vencemos a fase municipal, mas, por dois anos, nas fases sub-11 e sub-13, fui impedida de jogar a etapa estadual por ser menina”, relata. Foi então que o pai de Laura, amigos e familiares se uniram para alavancar o abaixo-assinado.
O pai, o servidor público federal Lauro Pigatin, 57, declara que se sentiu “um nada, impotente”, quando recebeu a notícia que ela não poderia jogar. “Ela perguntou: ‘Não posso ir?’. O que você vai responder? Porque você é uma menina.”
“Não se formam dez times de meninas de um dia para outro. Temos que brigar pela igualdade”, pede Lauro.
O caso de sua filha teve repercussão na internet, e ela foi liberada para jogar. Mas, quando isso finalmente ocorreu, o time perdeu um jogo e foi desclassificado.
“Nem deu tempo de eu participar. Então, o balanço é que, após muita luta, disseram para o meu pai que eu poderia jogar, mas a questão não era apenas para mim, era para todas as garotas dali para a frente. Queríamos a mudança do regulamento para misto, o que não aconteceu”, lamenta a jovem.
A Secretaria de Esportes do Estado de São Paulo afirma que organiza o campeonato estadual de futebol com a categoria sub-17 feminina, na qual garotas de 13 a 17 anos podem participar.
“Em todas as competições gerais (Jogos Regionais, Jogos Abertos da Juventude e Jogos Abertos), o futebol feminino também está presente. Os regulamentos são divididos entre equipes masculinas e femininas, como ocorre em todas competições organizadas por federações estaduais, pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e pela Fifa”, informa a nota.
Atualmente, Laura Pigatin joga no time feminino de base da Ferroviária, de Araraquara. “Poderia ter desistido por causa dessas situações, mas o incentivo da minha família, dos amigos, do treinador e dos meninos que jogavam comigo naquele momento foi muito importante”, diz.
“O apoio do meu time na época foi fundamental para que eu me motivasse ainda mais na luta, que não era só minha, é uma luta em favor de todas as meninas. Precisamos defender nossos direitos, pois lugar de mulher é onde ela quer. Não podemos aceitar passivamente o não”, conclui Laura.
Federação afirma não poder ‘quebrar regra’ O presidente da Federação Espírito Santense de Futebol de Salão, Arnaud Cordeiro, afirma que, apesar do pedido, não haverá nenhuma mudança no estatuto da competição estadual. “É algo que depende de uma decisão da Assembleia de Clubes. Não depende de nós, é de cima para baixo.”
Cordeiro afirma que a alteração abriria precedente para que categorias no futuro, até de adultos, quisessem o mesmo. “Por mais que eu queira incentivá-las, não posso quebrar a regra e por causa de uma menina prejudicar 60 meninos em uma possível desclassificação para uma disputa nacional, por exemplo, porque infringimos a regra”, diz Cordeiro.
A CBFS (Confederação Brasileira de Futsal) informa, em nota, que são de sua responsabilidade somente os campeonatos nacionais. Segundo a entidade, ficam a cargo das federações estaduais a organização e normatização dos seus campeonatos, não tendo a CBFS qualquer ingerência sobre os mesmos.
As limitações ainda são claras para Martas, Lauras e Laurinhas.