Sob a justificativa de que não dá mais para esperar, organizações e partidos de esquerda encararam o dilema de convocar atos de rua contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19 e decidiram marcar uma manifestação nacional pelo impeachment para 29 de maio.
O risco de promover aglomerações provocou um racha na oposição ao governo, com parte dos líderes defendendo a realização de protestos desde que sejam tomadas precauções sanitárias e outra parcela se opondo, sob o temor de críticas à contradição entre discurso e prática.
Embora divergências persistam, detratores do governo discutiram a proposta nos últimos dias, em reuniões virtuais que chegaram a reunir mais de 200 pessoas, e concordaram, por maioria, com o agendamento de manifestações para o último sábado deste mês em capitais e grandes cidades.
Além da bandeira de “fora, Bolsonaro”, manifestantes querem declarar apoio à CPI da Covid e pedir rapidez na vacinação e retorno do auxílio emergencial de R$ 600. Também serão abraçadas pautas como a luta antirracista, o fim da violência policial, o ataque às privatizações e a defesa da educação pública.
As frentes Povo sem Medo e Brasil Popular (coalizões que congregam dezenas de entidades), a UNE (União Nacional dos Estudantes), a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) têm representantes envolvidos nas conversas.
Entre os partidos, PT, PSOL, PC do B, PCB, PCO e UP têm membros participando da articulação.
A promessa é de obediência aos protocolos científicos, com obrigatoriedade do uso de máscaras (que também serão distribuídas), oferta de álcool em gel e distanciamento entre as pessoas. O receio de ataques, no entanto, resultou em diferenças no nível de envolvimento e no tom da convocação.
Entidades contrárias a atos de rua durante a crise de saúde, a CUT preferiu manter distância regulamentar para não aparecer como indutora das marchas e o MST está apoiando a iniciativa com ressalvas.
No caso da CUT, há pressão interna de sindicatos que encampam a bandeira do isolamento social. Trabalhadores como os da educação pressionam governos e empresários para que o retorno de atividades presenciais se dê apenas com vacinação e condições seguras.
Chamar para aglomerações vai na direção oposta, o que abre margem para críticas tanto das bases quanto de apoiadores de Bolsonaro. A CUT preferiu concentrar esforços em uma mobilização na quarta-feira (26) que terá Brasília como foco, com atos simbólicos, sem tantas pessoas.
A ideia é ir ao Congresso Nacional para falar com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e com parlamentares para pedir o aumento do auxílio para R$ 600 e a responsabilização de Bolsonaro pela ineficiência no combate ao vírus.
Já o MST prega a estratégia de descentralização das manifestações do dia 29. Para o dirigente João Paulo Rodrigues, “não é hora de luta só de varanda, mas também não é o momento de luta de avenida Paulista lotada” -a via é o local para onde foi marcada a concentração em São Paulo, às 16h.
“A grande contradição para a esquerda é como fazer atos de impacto e ao mesmo tempo manter o isolamento social. Não é um tema simples. Temos que ter muita cautela”, diz o membro da coordenação nacional dos sem-terra.
“Tem uma militância querendo ir para a rua, muita gente indignada. É difícil falar para ir ou não. Daí a nossa ideia de que os atos sejam espalhados. E não significa que quem for é negacionista e quem não for é pelego. Temos que buscar um meio-termo”, prossegue.
Organizadores também dizem que vão orientar pessoas que são dos grupos de risco da doença ou que estiverem com sintomas a evitarem se somar às multidões.
Uma das preocupações é diferenciar os atos da esquerda daqueles promovidos por apoiadores de Bolsonaro, que muitas vezes atraem pessoas sem a devida proteção para evitar o contágio, como ocorreu em Brasília no sábado passado (15).
Na ocasião, o próprio Bolsonaro, sem máscara e montado a cavalo, se juntou aos simpatizantes. Bolsonaristas mantiveram atos de apoio a ele durante a pandemia. Em São Paulo, as manifestações incorporaram críticas ao governador João Doria (PSDB), adversário político do titular do Planalto.
Na frente que prega a saída do presidente, os protestos nos últimos tempos ficaram restritos aos panelaços, que tiveram força no início da pandemia e depois arrefeceram, e às carreatas, que tiveram adesão em um primeiro momento, mas esfriaram diante da piora nos números da Covid.
Torcidas organizadas de clubes de futebol e grupos da causa antirracista também realizaram protestos, mas sem a adesão de movimentos e partidos mais expressivos. Por isso, o 29 de maio tem sido visto como a primeira vez que a esquerda estará unida nas ruas desde a eclosão da pandemia.
Atos do movimento negro e de uniões estudantis nas últimas semanas empolgaram alas da oposição, que dizem sentir um clima crescente de indignação com Bolsonaro e os problemas do país.
“Minha avaliação é que não é 8 nem 80”, diz Raimundo Bonfim, coordenador nacional da CMP (Central de Movimentos Populares) e um dos organizadores da manifestação.
“Não está na hora de chamar mobilizações de forma indiscriminada, para reunir milhares de pessoas como se nada estivesse acontecendo, mas também não dá para continuarmos em casa com o desemprego em alta e a pandemia descontrolada. Isso é tudo o que o governo Bolsonaro quer.”
A postura vacilante se repete nos partidos. Enquanto siglas como PSOL e PCO já disparam abertamente convites para os atos, o PT adotou até agora o discurso de que a convocação é de responsabilidade dos movimentos e entidades, mas que o partido apoia a pauta.
Pré-candidato ao Planalto em 2022, o ex-presidente Lula (PT) tem buscado se contrapor às narrativas e gestos de Bolsonaro e seus simpatizantes, defendendo as máscaras e o isolamento.
Aliado do petista e pré-candidato a governador de São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL) divulgou vídeo nesta quinta-feira (20) estimulando seguidores a “tomar as ruas no país inteiro”. Boulos é da direção da frente Povo sem Medo e do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).
“A gente sabe que é difícil convocar mobilizações de rua num contexto de pandemia, mas hoje nós não temos alternativa. O governo mata mais do que o vírus”, disse.
Segundo Josué Rocha, membro da coordenação do MTST, “a pressão nas ruas é fundamental para avançar em direção ao impeachment”, mas o processo exige responsabilidade. “Não somos bolsonaristas negacionistas. Os atos são necessários porque a gente não vê outra saída”, diz.
Rocha minimiza as fraturas no campo da esquerda sobre as mobilizações, afirmando que “não há uma divergência em relação à proposta do ato, mas em relação aos métodos, já que cada organização tem uma composição diferente”.
Para Douglas Belchior, do coletivo de defesa da justiça racial Uneafro, “a conjuntura política, social e econômica se deteriorou muito no período de um ano, obrigando a uma revisão da diretriz de ficar em casa e imaginar ações políticas que não fossem na rua”.
“A população pobre não teve a opção do isolamento. Teve que deixar sua moradia para trabalhar ou para buscar emprego, superlotando o transporte público. Ora, se o nosso povo é obrigado a sair para ganhar o pão de cada dia, então faz sentido ocupar as ruas em protesto”, diz.
“Não é contradição, é luta pela vida”, completa Belchior. “Há organizações que interpretam que este é o momento de retomada das ruas, mas respeitamos grupos que tenham entendimento diferente.”
A opinião é reforçada pela secretária nacional de movimentos sociais do PSOL, Paula Coradi. “A gente não acha que as questões relevantes vão acontecer somente no Parlamento, nas redes sociais ou com panelaços. Sem a rua, é difícil avançar.”
Na visão da psolista, o conhecimento que se tem hoje sobre a disseminação do vírus permite a organização de manifestações com risco reduzido de transmissão, em locais abertos, com uso de máscara e distanciamento. “Não dá mais para ficar parado diante de tantos absurdos”, diz.