sábado, 23 novembro 2024

Graças a bilhete, pacientes presas em celas de clínica e vítimas de abuso sexual são soltas

Polícia Civil resgatou 33 mulheres no local  

Bilhete que pede socorro à família foi entregue a polícia – Reprodução

No último dia 3, a delegada titular de Defesa da Mulher do Crato, Kamila Moura Brito, recebeu um bilhete entregue por uma mulher. A mensagem havia sido passada pela irmã dela, internada em uma clínica de repouso feminina na cidade, que fica a 517 km de Fortaleza.

Escrito a mão em uma folha arrancada de um caderno, o bilhete trazia um pedido de socorro: “Diga que estou sofrendo abuso sexual, manda vim me tirar (…) vem logo.”

O pedido foi atendido pela família, que decidiu não só tirar a mulher de 38 anos da clínica dedicada à internação de mulheres com problemas psiquiátricos, como fez a polícia desencadear uma operação nesta quinta-feira (12) que resgatou 33 mulheres do local, a maioria delas presas em celas em condições sub-humanas.

O proprietário da casa de repouso feminino, Fábio Luna dos Santo, 35, foi preso por suspeita dos crimes de abuso sexual, maus-tratos, apropriação de benefícios e cárcere privado.

“Essa paciente conseguiu entregar esse bilhete de forma escondida, aproveitou quando estava saindo de uma consulta médica. Era um verdadeiro pedido de socorro. Nós orientamos a família e entramos em contato com o psiquiatra dela, que alegou que a paciente tinha perfeita sanidade mental, e não havia porque duvidar do relato”, explica.

No dia seguinte à entrega do bilhete, a vítima foi à delegacia e prestou depoimento confirmando toda a história de abusos. “Ela veio aqui trazida pela irmã. Em seguida pedimos para ela ir ao IML [Instituto Médico Legal] fazer o exame. Diante das declarações dela, eu pedi a prisão preventiva do dono da clínica, e a Justiça decretou ontem [quarta-feira] à tarde”, explica.

Mulheres eram mantidas em alojamentos similares a celas na clínica – Divulgação/SSPDS-CE

Cenário degradante

A delegada acordou cedo ontem para ir até a clínica, mas não sabia o que a esperava no local. A equipe, com seis policiais (quatro delas mulheres), chegou à Casa de Acolhimento Feminino Água Viva, no bairro do Mirandão, para cumprir o mandado judicial e fazer buscas encontrou um cenário que mais parecia um filme de terror.

“O dono morava lá. Ao chegarmos, vimos que as condições eram sub-humanas. Eram mulheres entre 30 e 90 anos, estavam em grande parte presas em celas: eram cubículos trancados com cadeado, com grades nas portas. O cheiro era fétido! Havia cinco cachorros andando no local. Também tinha resto de comida dentro de baldes. As mulheres falavam que odiavam o local e que precisavam de ajuda”, relata.

Kamila conta que as celas onde as mulheres ficavam presas não tinham banheiro, e elas faziam necessidades em um balde. “Só no dia seguinte pela manhã é que jogavam o material no sanitário. Havia apenas três banheiros do lado de fora”, explica a delegada.

A situação encontrada comoveu toda a equipe. “Eu chorei ao ver aquilo. Não só eu, mas outros da equipe. Era uma situação degradante, que nunca havia visto nada igual minha carreira”, conta Kamila, que atua como delegada há 12 anos.

“A sensação que sai é que a humanidade não tem limite. Nesses 12 anos de carreira, já tinha visto pai estuprando filhos; padrasto estuprando enteada; idosas agredidas pela próprio filho; coisas muito chocantes. Mas ali não era uma pessoa só: eram 33 mulheres com doenças psicológicas e psiquiátricas, que precisavam de atenção especial”, disse a delegada.

O cenário levou a policial a efetuar não só pelos abusos sexuais, mas também em flagrante por maus-tratos, apropriação de benefícios e cárcere privado.

“Eu amo o que faço, só que é muito cansativo. Não é um mar de rosas. Mas só saber que você ajudou aquelas mulheres, e elas não vão mais passar por aquilo, é gratificante. Deus me dá força quando estou muita cansada”, revela a delegada, que no momento da entrevista a Universa, às 15h, não havia sequer almoçado. “Comi só uma maçã de manhã.”

As mulheres não tinham banheiro nas celas e faziam as necessidades em balde – Divulgação/SSPDS-CE

Depoimento de abuso

A delegada já ouviu alguns depoimentos inicias. Uma paciente revelou que o proprietário costumava abusar das mulheres. “Ela alegou que ele vivia passando a mão nas partes [íntimas] dela, e sabia que também ocorria com uma amiga dela. Dizia que ele brincava com isso, mas que ela não gostava. Quando voltamos, ela veio conosco para a delegacia e chorou muito quando a irmã chegou para pegar ela”, conta.

Desde ontem, polícia e Centro de Referência de Assistência Social fazem contato com os familiares de pacientes que estavam internadas lá. “A gente já pegou a listagem, e estamos vendo como podemos ajudar e onde colocar essas mulheres”, diz.

À delegada, o dono da clínica falou que a casa existia há seis anos e recebia pacientes da cidade e municípios do entorno do Crato.

A página da clínica na internet mostra fotos da fachada e imagens de mulheres. Não há informações sobre público-alvo e tipos de serviços prestados. Nas redes sociais, as contas da clínica são fechadas.

“Quem internava essas pessoas lá eram os próprios familiares. Daí a gente até se pergunta: como tinham coragem de deixar uma pessoa ali? Sei das dificuldades de ter uma paciente dessas, mas a condição ali é sub-humana. O dono me disse aqui que não via problemas. Eu até perguntei se ele internaria um familiar naquela casa, e ele disse que sim”, conta.

A polícia vai investigar agora detalhes de como era, por exemplo, o financiamento da clínica. À delegada, o proprietário disse o local era mantido com os benefícios dessas mulheres, que eram recolhidos pela casa para cobertura dos custos, O local tinha oito funcionários, além de voluntários que ajudavam.

A reportagem entrou em contato por telefone com a clínica, e uma pessoa informou que o caso está com os advogados e que ninguém da família poderia comentar sobre a prisão. Ele também relatou que a família está muito abalada. O nome e número dos defensores, porém, não foram repassados.

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