Em meio a uma recessão provocada pela crise do coronavírus e a ataques do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a OMC (Organização Mundial do Comércio) vai ficar sem seu diretor-geral um ano antes do previsto.
O brasileiro Roberto Azevêdo, 62, que lidera a entidade desde setembro de 2013, anunciou nesta quinta (14) aos chefes de delegação da OMC que deixa o cargo no dia 31 de agosto, abrindo mão de um ano de seu mandato, que terminaria em agosto de 2021.
No comunicado, Azevêdo disse que o confinamento e uma cirurgia no joelho lhe deram “mais tempo do que o habitual para refletir”, e a conclusão foi a de que antecipar sua saída permitiria à organização discutir novos rumos já com uma nova liderança.
Ex-diretores da OMC, especialistas em comércio-exterior e diplomatas ouvidos pela reportagem acham, porém, que será difícil a escolha de um novo diretor-geral antes das eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para novembro deste ano.
O momento também deve exigir a escolha de um candidato com experiência política relevante, “capaz de falar de igual para igual com líderes de potências globais”, dizem analistas.
O especialista em comércio exterior Jeffrey Schott, do Instituto Peterson de Economia Internacional (PIIE), afirma que Azevêdo “mostrou liderança firme em uma conjuntura muito difícil para a organização”, mas que experiência política nos altos escalões pode ajudar em momento de negociações delicadas.
A organização terá que dar respostas para os choques nas cadeias de suprimentos, no comércio e no investimento, além de enfrentar questões como ambiente e clima. “Seria bom ter alguém com experiência na arena internacional e em um cargo de alto nível seu próprio país”, diz ele.
Uma solução intermediária seria a gestão provisória por um dos quatro diretores-adjuntos -o nigeriano Yonov Frederick Agah, o alemão Karl Brauner, o americano Alan Wolff e o chinês Yi Xiaozhun- ou por um colegiado deles.
Formada em 1995, a OMC foi uma evolução do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), liderado pelos EUA no pós-guerra para fortalecer o sistema multilateral de comércio e diminuir as barreiras ao comércio e ao investimento.
“Quase todo o livro de regras da organização foi elaborado quando nações transatlânticas dominavam o comércio mundial e a pegada da China era quase imperceptível”, diz o analista sênior do (PIIE), que participou de rodadas do GATT nas décadas de 1970 e 1980 e acompanha de perto a OMC.
Desde então, não só a China desestabilizou o equilíbrio geopolítico e comercial, mas toda a maneira de produzir, transportar, comercializar e financiar bens e serviços foi transformada pela tecnologia.
A tentativa de adaptar as regras da OMC às economias do século 21, porém, naufragou com a Rodada de Doha, iniciada no final de 2001 e abortada em 2008 por países que queriam manter protegidas suas agricultura e indústria.
Com as negociações multilaterais patinando, Azevêdo priorizou o Acordo de Facilitação do Comércio (2013), citado como uma das principais conquistas de sua gestão, e atualizou o Contrato de Compras Governamentais (2014).
Sob o governo Trump, os EUA passaram de principal arquiteto do sistema comercial à mais forte ameaça da atual estrutura de negociação e solução de conflitos, diz Schott.
“Trump acredita que as antigas administrações dos EUA pagaram muito e receberam muito pouco em acordos multilaterais anteriores. Está particularmente irritado com o fato de as tarifas européias de automóveis serem quatro vezes maiores que as americanas”, cita o analista.
Outro alvo de Trump são as isenções dadas a países que se auto-designam em desenvolvimento, como já fizeram Singapura e Coréia do Sul no passado.
Um terceiro motivo, segundo Schott, é que as regras da OMC não foram projetadas para grandes economias em que o governo se sente à vontade para intervir nos mercados, como a China, ou para acomodar os gigantes do comércio digital.
“Trump quer uma mão mais livre para que as autoridades dos EUA aumentem as tarifas e deseja remover a maioria das preferências comerciais dos países em desenvolvimento nos acordos comerciais atuais e futuros”, afirma o professor.
O sistema de solução de controvérsias, que os EUA paralisaram ao bloquear a nomeação de novos juízes, é criticado por tomar decisões prejudiciais aos direitos americanos e expandirem suas obrigações.
Em um passo adiante das ameaças feitas por Trump, o senador republicano Josh Hawley apresentou uma resolução para que os Estados Unidos deixem a OMC.
Há poucas chances de aprovação, segundo Schott, porque “o Congresso não quer causar mais perturbações econômicas numa crise que já é suficientemente séria”, mas o ataque aberto do senador complementa os esforços de Trump para pressionar a organização a atender suas demandas.
Nesse cenário, Azevêdo achou melhor passar adiante a procura de uma solução.
“Quanto mais cedo eu permitir que vocês prossigam com o processo de seleção, melhor será. Devemos dar ao meu sucessor tempo suficiente para planejar não apenas a MC12 [conferência ministerial que foi adiada para o próximo ano], mas como ela se encaixa nos seus planos para o futuro da organização”, disse o diretor-geral, no comunicado em que classificou sua decisão como “pessoal e familiar”.
O processo de seleção para o diretor-geral da entidade começa até nove meses antes do final de cada mandato, e envolve uma série de rodadas comandadas por uma comissão especial, em que se tenta chegar ao candidato aceito por todos os membros, ainda que não fosse sua primeira escolha.
Diplomatas que já participaram de processos anteriores dizem que eles envolvem muitas viagens de apresentação das plataformas e prioridades, o que será dificultado pela pandemia.
Segundo a agência Bloomberg, Azevedo reconheceu que sua partida abrupta poderia avançar a narrativa de que a OMC chegou a um beco sem saída.
“Pode contribuir para isso. Mas basicamente não é verdade. Se eu ficar aqui, o vírus desaparecerá? O vírus não desaparece. Se eu ficar aqui, os EUA e a China, de repente, apertam as mãos e dizem: ‘OK, deixe o passado passar’ ‘? Não, isso não vai acontecer. Nada vai mudar se eu ficar aqui”, afirmou ele à agência.
No comunicado feito aos delegados, Azevedo afirmou que não estava buscando uma carreira política. Questionado pela Bloomberg sobre seus próximos passos, respondeu: “Eu não sei. Vou perguntar a minha esposa”.