Em maio de 2020 o país apareceu em primeiro lugar entre os que sofriam de ansiedade
O despertador de Helloá tocou, mas daquela vez ela não conseguiu desligá-lo. Seus músculos não respondiam. “Pensei ‘estou morrendo’, mas eu estava tão mal, minha rotina era tão triste, que achei que se acabasse ali não seria tão ruim”, conta a administradora.
Era uma crise de “burnout”, resultado de cinco meses de prazos impossíveis no novo emprego, somados a várias horas de estudo na faculdade e nenhuma de descanso. “Eu pensava que o sofrimento fazia parte do sucesso. Trabalhe enquanto os outros dormem, estude enquanto os outros se divertem.”
O colapso também veio depois de diversos avisos ignorados: dores de cabeça insistentes, azia constante, dificuldade para dormir e até uma dor aguda no peito que ela, na época com 21 anos, imaginou ser um infarto. Chegou a avisar os chefes, mas ouviu que estava sendo fraca.
Uma pesquisa lançada pela empresa Ipsos para o Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado em 10 de outubro, mostra que 75% dos entrevistados no Brasil pensam sobre sua própria saúde mental com muita ou considerável frequência. É a maior marca entre os 30 países que participaram do questionário – a média mundial é de 53%.
A pesquisa ouviu 21.513 pessoas de 16 a 74 anos, entre 20 de agosto e 3 de setembro, sendo cerca de 1.000 no Brasil. O questionário foi aplicado de maneira online, portanto abrange a parcela da população com acesso à internet, considerando o perfil demográfico de cada lugar.
“Temos visto o Brasil sempre no topo do ranking em pesquisas que fazemos sobre saúde mental, e isso vem aumentando ano após ano. Por um lado, a pandemia agravou o problema, mas por outro deu mais espaço para falar sobre isso”, diz Helena Junqueira, coordenadora da pesquisa.
“Transtornos mentais são muito mais comuns do que as pessoas imaginam. Durante um ano, um quarto da população vai desenvolver algum problema. Na vida, será cerca de metade. Não é muito diferente de usar óculos”, ilustra Jair Mari, chefe da psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
“A saúde mental tem um fator social determinante. Os Estados Unidos, por exemplo, têm níveis muito parecidos com os nossos. Tudo indica que isso pode estar relacionado à desigualdade: a pessoa que não tem nada olha para quem tem tudo”, afirma.
Outra hipótese para a preocupação com o tema no país é cultural –segundo essa visão, os brasileiros estariam mais dispostos a demonstrar suas emoções do que moradores de outros lugares. Isso também ajudaria a entender, de acordo com o psiquiatra, por que na China os transtornos mentais são externalizados e investigados com menos frequência.
“A grande maioria dos meus seguidores na internet são mulheres, que se sentem sobrecarregadas e procuram ajuda mais cedo”, diz Helloá Castro. “Os homens não falam, muitas vezes canalizam o tratamento do ‘burnout’ para o álcool ou drogas. Quando chegam em mim é porque já esgotaram todas as possibilidades.”
“Há um vácuo de atendimento enorme”, concorda o psiquiatra Jair Mari. “Transtornos mentais são responsáveis por um quinto das incapacitações, mas só cerca de 2% do orçamento da Saúde é aplicado no tema. Na nossa realidade achamos que precisaria ser pelo menos 6%. Canadá e Reino Unido aplicam 11%”, afirma.
Um paper publicado por ele e outros pesquisadores em 2014 mostrou que só 20% das crianças e adolescentes com distúrbios psiquiátricos –que deveriam ser priorizados pelo alto risco de suicídio– tiveram acesso a profissionais da área nos 12 meses anteriores.
Quem trabalha na área vê ao menos um legado positivo da pandemia. A constante exposição do tema pela mídia e por marcas resultou numa redução do preconceito sobre os transtornos emocionais.
“Quando comecei a estudar sobre saúde mental, há sete anos, não havia quase nenhuma informação na internet. Agora teve um boom de procura, hashtags, páginas novas, universidades falando sobre o assunto”, comemora Helloá, que ressalta que, para além do discurso, é preciso mudar a cultura.