O endurecimento nas regras estava no projeto de lei do governo que altera o Imposto de Renda –mas foi retirado na nova versão, escrita em parceria entre o ministro Paulo Guedes (Economia) e o relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA)
O Brasil está perdendo a oportunidade de elevar o rigor contra a sonegação dos mais ricos ao remover da reforma do Imposto de Renda a regra que fecha o cerco ao uso de paraísos fiscais. A visão é de Zayda Manatta, chefe do Secretariado de Assuntos Tributários da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e ex-economista sênior do FMI (Fundo Monetário Internacional).
O endurecimento nas regras estava no projeto de lei do governo que altera o Imposto de Renda –mas foi retirado na nova versão, escrita em parceria entre o ministro Paulo Guedes (Economia) e o relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA).
O artigo 6º do projeto determinava a taxação dos recursos de pessoas físicas brasileiras alocados em empresas estrangeiras (as chamadas offshore), quando sediadas em paraísos fiscais. A cobrança seria anual, mesmo se o dinheiro não fosse trazido ao Brasil.
Atualmente, indivíduos não estão sujeitos a esse tipo de cobrança. “É uma brecha na legislação brasileira, pois quem tem capacidade de investir em um país de tributação favorecida não vai aplicar diretamente, e sim por meio daquele país”, afirma Manatta, que também é servidora licenciada da Receita Federal.
Ela afirma que a retirada da regra favorece a desigualdade tributária. “Isso abre uma possibilidade de planejamento tributário muito grande e desigual, porque é muito mais favorável [para os mais ricos] do que para o indivíduo que tem capacidade menor de se globalizar”, diz.
“Tudo o que o sistema deve evitar é tratar de forma diferente situações assemelhadas. E, se for beneficiar alguém, tem que ser o pequeno.”
Há pelo menos R$ 50,4 bilhões em dinheiro de brasileiros em contas no exterior. O volume se refere aos recursos existentes em todas as jurisdições externas (não apenas paraísos fiscais), mas pode ser muito maior porque diz respeito somente ao capital declarado à Receita Federal.
Dados mais abrangentes do Banco Central apontam a existência de recursos em volume significativamente maior. De acordo com a autoridade monetária, 60,4 mil pessoas físicas residentes no Brasil tinham US$ 192,6 bilhões em ativos externos ao fim de 2019 (quase R$ 1 trilhão). Também nesse caso, o número diz respeito somente às quantias declaradas.
A Receita Federal considera paraíso fiscal o local que tributa a renda com alíquota inferior a 20%. Além disso, também entra na lista o lugar que protege o sigilo sobre a composição societária das empresas.
Entre os mais de 60 integrantes da relação, estão Ilhas Cayman, Aruba, Bahamas, Bermudas, Irlanda, Líbano e Emirados Árabes Unidos.
O endurecimento é recomendado pela OCDE, que desde 2015 sugere maior rigor da legislação para taxar o acionista (seja pessoa física, seja jurídica), independentemente da distribuição, pelos lucros obtidos por entidades controladas em territórios com regime fiscal privilegiado.
“Não ter essa regra favorece muito o planejamento tributário agressivo e deixa essa brecha aberta. Quem não tem acesso a esse tipo de arranjo vai ser mais tributado”, diz Manatta.
A regra é adotada por países como Estados Unidos, Canadá e França, com diferenças em cada caso.
Alguns governos preferem ter uma postura mais flexível e tributar com mais rigor apenas recursos offshore que servem a investimentos não ligados a atividades produtivas (como um serviço, comércio ou indústria) e sim a rendimentos financeiros –como juros, por exemplo. A desvantagem de seguir um modelo de flexibilização como esse seria a dificuldade para estabelecer um cálculo preciso.
De qualquer forma, o avanço da tecnologia e da globalização da economia torna mais relevante o endurecimento, na visão de Manatta. “É muito fácil colocar recursos em paraíso fiscal, é uma operação online e não envolve custos elevados”, afirma.
Estimativa da OCDE com dados de 2019 aponta que, em todo o mundo, mais de € 10 trilhões (R$ 60,8 trilhões) são mantidos por residentes em empresas fora de seus respectivos países por meio de 84 milhões de contas.
A OCDE não obriga seus membros a adotar a taxação dos recursos de pessoas e empresas em paraísos fiscais, mas recomenda a tributação independentemente da distribuição como uma medida de boas práticas para evitar a erosão da base tributária e a transferência de recursos ao exterior.
Na época das discussões, o governo brasileiro participou dos debates da OCDE. A própria Receita Federal afirmou no projeto de lei que a regra era sugerida pela entidade.
Para Sabino e Guedes, era necessário remover as regras do projeto para facilitar as discussões.
“Retiramos boa parte de medidas que não estava relacionada com os objetivos iniciais, para discutir num momento futuro”, afirmou o deputado na quinta-feira (22) em evento promovido pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) e pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos).
“Combate à elisão [estratégia contábil para fugir de impostos], ao diferimento e até mesmo a sonegação são importantes mecanismos, mas vamos deixar para discutir em uma matéria relacionada a esse assunto”, disse, sem citar quando as regras serão discutidas.
Guedes já comentou publicamente que a discussão sobre as empresas estrangeiras complicaria os debates –sem especificar por quê. “Ah, ‘porque tem que pegar as offshore’ e não sei quê. Começou a complicar? Ou tira ou simplifica. Tira. Estamos seguindo essa regra”, disse o ministro.