A menina capixaba de dez anos que engravidou após ter sido estuprada de forma recorrente no Espírito Santo está fora de perigo após realizar legalmente um aborto. O quadro de saúde dela é bom após o procedimento médico para interromper a gestação.
A lei brasileira prevê o direito ao aborto quando a gestação decorre de estupro e quando há risco de morte para a mãe -o episódio atual se insere em ambos os casos-, além de nos casos de anencefalia do feto.
O procedimento de aborto foi iniciado no domingo (16) em uma maternidade pública do Recife sob protestos de grupos católicos e evangélicos, liderados por parlamentares conservadores. Nesta segunda (17), a menina apresentou contrações. Ainda é preciso fazer a curetagem na criança.
“Ela está bem. Pela manhã, começou a apresentar contrações uterinas e esperamos encerrar todo o processo hoje”, informou o médico Olímpio Moraes, diretor-médico da unidade de saúde onde a menina está internada.
Ainda não há informações precisas sobre quando a menina irá receber alta médica para retornar ao Espírito Santo. O procedimento ocorreu no Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), hospital referência no atendimento à saúde da mulher.
Ela precisou sair de seu estado porque o hospital procurado pela família em Vitória se negou a fazer o procedimento legal com urgência.
A violência contra a menina de São Mateus, cidade a 218 km de Vitória, ganhou repercussão nacional. Ela foi abusada sexualmente ao longo de quatro anos pelo marido de uma tia. O homem, de 33 anos, foi indiciado pelos crimes de ameaça e estupro de vulnerável e está foragido desde que o caso veio à tona.
A viagem, realizada em um avião comercial, deveria ter ocorrido de forma sigilosa, mas foi divulgada nas redes sociais de conservadores.
A ativista extremista Sara Giromini, conhecida nas redes como Sara Winter, chegou a publicar o nome da vítima, contrariando o que preconiza o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A Justiça do Espírito Santo determinou o apagamento de posts que identifiquem a criança direta ou indiretamente.
Em Recife, grupos cristãos foram para a porta da maternidade na tarde de ontem para protestar contra a realização do aborto legal.
Liderados pelos parlamentares Joel da Harpa (PP), Clarisa Tércio (PSC) e Cleiton Collins (PP), os ativistas cristãos fizeram rodas de oração, e médicos do hospital foram chamados de “assassinos”. Feministas também estiveram no local para defender o direito à realização do procedimento legal. O tumulto só terminou por volta das 20h30 de domingo.
A reportagem apurou que a menina esteve no Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes), vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo após o juiz Antonio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus, conceder o direito ao aborto na última sexta-feira (14).
No seu despacho, o magistrado reproduziu o desespero da criança quando era atendida por uma assistente social. Ao ser informada pela profissional que estava grávida, a menina “entra em profundo sofrimento, grita, chora e afirma não querer levar a gravidez adiante”, escreve o juiz.
Fernandes disse que respeitou a vontade da menina amparado também por manifestação em favor do direito ao aborto defendida pelo Ministério Público do Espírito Santo.
No hospital escolhido, a menina passou por exames. A equipe médica constatou que ela estava com 22 semanas e quatro dias de gestação -ou seja, uma gestação avançada dentro das 40 semanas de prazo total, mas sem impedimento clínico nem legal no caso de uma vítima de estupro com risco de morte.
O hospital não iniciou os procedimentos para a indução do aborto e pediu que a criança retornasse nesta semana para uma nova reavaliação, mas ela desenvolveu diabetes gestacional e corria risco de morrer. O atraso do procedimento, neste caso, agrava a situação. Se seguisse grávida, a criança poderia desenvolver outras complicações clínicas, como pressão alta e fissuras no útero, que reduziam suas chances de sobreviver.
O Hucam foi questionado pela reportagem sobre a postergação do atendimento dado à criança, mas o hospital não se manifestou. A unidade também deve ser questionada na Justiça, porque é suspeita de vazar informações do prontuário médico da criança.
A Corregedoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) abriu investigação para apurar se a Justiça do Espírito Santo resguardou os direitos da criança durante a condução do processo.
Especialistas em direito afirmam que não há um período limite para se fazer um aborto autorizado pela Justiça, sobretudo quando a gestante corre risco de morrer.
“O que vemos no caso dessa menina é que o hospital pode ter optado por uma prática comum de violência, que é a postergação da gravidez para conseguir salvar o feto. Não se pensou na menina”, disse a advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski.
Barwinski coordena no Brasil o Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, entidade que vem denunciando em todo o mundo esse tipo de prática clínica. “Gravidez e maternidade forçadas se equivalem à tortura”, diz a especialista.
Quando procurou pela primeira vez um hospital ainda em São Mateus, no dia 7 deste mês, a menina estava com 21 semanas de gestação, diz Barwinski. “Esse caso começou errado desde o início. A menina deveria ter sido atendida lá mesmo em São Mateus. Qualquer ginecologista e obstetra estão preparados para fazer esse tipo de procedimento.”
Mas a menina, assim que foi liberada do hospital, seguiu para um abrigo de crianças vulneráveis em Vitória.
Segundo a ginecologista Helena Paro, professora da Faculdade de Medicina da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), a literatura médica já mostrou que a indução do aborto na idade gestacional em que a menina se encontra é quatro vezes mais segura do que o parto vaginal.
Antes da violência sexual à que foi submetida, a menina já tinha sofrido a morte precoce da mãe e ausência do pai, que está preso.