sexta-feira, 22 novembro 2024

Dinheiro e tecnologia aceleram novas vacinas

A corrida por uma vacina contra a Covid-19 trouxe à tona uma questão até então pouco debatida: o tempo e os custos para o lançamento e produção de uma vacina.

Houve algum estranhamento quando, recentemente, farmacêuticas e institutos de pesquisa começaram a anunciar os resultados das pesquisas clínicas com as vacinas para o novo coronavírus apenas poucos meses após o início dos testes. Dois fatores principais, porém, explicam essa rapidez: dinheiro investido e tecnologias preexistentes.

Sobre a parte do dinheiro não há muito segredo: quanto mais recursos empregados, mais rapidamente são realizados os testes clínicos, divididos em três fases, que, ao todo, podem requerer dezenas de milhares de voluntários.

Somente os EUA investiram mais de US$ 10 bilhões (R$ 50 bilhões) no desenvolvimento de vacinas. O consórcio Covax Facility, da OMS (Organização Mundial da Saúde), que visa garantir acesso mais equitativo das vacinas aos países, também quer angariar US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões) para cumprir seu objetivo.

A União Europeia fez um investimento de mais de 500 milhões de euros (R$ 3,1 bilhões) para financiar as vacinas em desenvolvimento. Além disso, os governos da França e da Alemanha injetaram recursos em seus próprios laboratórios, Sanofi Pasteur e Curevac, na ordem de 200 milhões de euros (R$ 1,2 bilhão) e 300 milhões de euros (R$ 1,8 bilhão), respectivamente.

A Sinovac, fabricante da Coronavac, vacina chinesa testada em conjunto com o Instituto Butantan, acaba de receber um investimento de mais de US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) para impulsionar o novo fármaco.

Tantos e abundantes investimentos fazem sentido. Segundo cálculos da OMS, há um prejuízo global de US$ 375 milhões (R$ 1,9 bilhão) a cada mês que passamos imersos na pandemia.

O outro termo importante para essa equação da chegada das vacinas é a obtenção do imunizante propriamente dito, por meio da pesquisa científica.

Se no início do século 20 as pesquisas ainda buscavam desvendar o agente causador das doenças e, só então, meios de como combatê-las, dos anos 2000 para cá a biotecnologia e a construção de megafábricas permitiu um avanço histórico em pesquisa e produção de medicamentos.

O conhecimento sobre imunização contra a varíola (variolação) é milenar, e usava as próprias cascas das feridas de pessoas infectadas. Mas só na virada do século 18 para o 19 é que passou a se disseminar a prática de usar um vírus mais fraco, da varíola bovina, com o intuito de prevenir a doença humana. A vacinação se tornou obrigatória no Reino Unido em 1853.

No caso do sarampo, o vírus foi isolado em 1954 e, depois de muitas candidatas, uma vacina foi aprovada para uso em 1963, com base em uma versão atenuada do patógeno.

Isso se deu, porém, em uma época em que os estudos de agentes infecciosos eram dificultados, e os laboratórios, muito mais rudimentares.

No caso do Sars-CoV-2, vírus responsável pela pandemia de Covid-19, a primeira notificação de casos suspeitos na China à OMS ocorreu no dia 31 de dezembro de 2019. No dia 9 de janeiro de 2020, o novo coronavírus já tinha nome, forma e sua composição biológica conhecida.

“Os trâmites para a avaliação das vacinas estão sendo cumpridos, mas de forma preliminar, apenas com parte da amostra. Se são 10 mil voluntários, são analisados os dados de 2.500 que tenham cumprido um tempo minimamente aceitável, algo como três meses, em vez de um ou cinco anos. E isso faz sentido, afinal é uma crise sanitária sem precedentes nos últimos cem anos”, explica Alexandre Barbosa, chefe da infectologia da Unesp e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Mas não é só o tempo de avaliação e aprovação pelas autoridades sanitárias, como a Anvisa, que determina o tempo que vai levar para uma vacina sair. Na verdade, é bem complicado comparar o desenvolvimento das vacinas.

Há doenças que alteram de forma muito complexa o organismo, atacando os mecanismos de defesa do portador, como no caso do HIV, contra o qual se tenta produzir uma vacina desde a década de 1980.

“Não podemos misturar alhos com bugalhos, não se pode comparar o novo coronavírus com o HIV, mas sim com um vírus respiratório, como o influenza [da gripe]”, diz Maurício Nogueira, virologista e professor da Faculdade de Medicina de Rio Preto.

“Em 2009, com a pandemia de H1N1, em poucos meses já havia vacina contra o vírus”, lembra o pesquisador.

Das vacinas anti-Covid-19 mais adiantadas, a Coronavac emprega a mesma estratégia das vacinas contra o influenza. A técnica é a de inativar o vírus – matá-lo, seja com calor ou tratamento químico – e injetar o vírus morto no organismo.

Normalmente, vacinas de vírus inativado geram menos resposta imunológica do que as de vírus atenuado (já que o patógeno não está em sua melhor forma). Essa tecnologia tradicional é a mesma usada para produzir as vacinas da raiva, pólio, e as sazonais contra a gripe.

Já a tecnologia utilizada pela vacina de Oxford/AstraZeneca se vale de um adenovírus de chimpanzé modificado.

Trata-se de uma partícula viral que carrega um pedaço do genoma do Sars-CoV-2, o que faz com que, após vacinado, o organismo produza uma proteína do novo coronavírus, com base na qual o sistema imunológico se arma contra uma possível nova infecção.

O trabalho já vinha sendo desenvolvido há mais de 15 anos, depois da pandemia de Sars, provocada por um parente do novo coronavírus, o Sars-CoV-1, em 2003. Como já existia o vetor viral, foi só trocar a parte do material genético correspondente.

É diferente do caso da vacina contra febre amarela, que requereu muitos anos de pesquisa. A transmissão (intermediada por mosquitos como os do gênero Aedes) começou a ser conhecida no final do século 19.

O vírus foi isolado em 1927 (um enorme feito) e, na década de 1930, o virologista Max Theiler e colegas conseguiram desenvolver uma vacina, após anos de esforço no cultivo e na atenuação do vírus. Por essas realizações, Theiler recebeu o Nobel de Medicina em 1951.

Outro ponto a ser considerado, afirma Nogueira, é que desde que conhecemos o Sars-CoV-2 sua sequência genética já estava descrita, algo que, anos atrás, poderia demorar dias ou semanas. “E aí qualquer engenharia genética de fundo de quintal consegue preparar vacinas. Já a parte clínica foi rápida porque é muito dinheiro envolvido.”

As vacinas desenvolvidas pela Pfizer e pela Moderna (as de maior eficácia reportada até o momento), se valem de uma plataforma conhecida como vacina de RNA.

O material genético do coronavírus é feito de RNA. Ao empacotar apenas uma parte de interesse desse RNA (sem o resto do patógeno), é possível fazer o próprio organismo produzir a proteína viral e se preparar contra uma eventual infecção.

O RNA, por mais que venha de organismos ou vírus diferentes, tem sempre mais ou menos o mesmo jeitão, e é uma molécula bastante instável, de rápida degradação no ambiente, não sendo capaz de se integrar ou alterar o DNA do animal vacinado. Assim, não havia muito segredo em relação à segurança dessa tecnologia. O emprego em humanos é que é inédito.

O receio, na verdade, é que as vacinas não fossem capazes de ativar o sistema imunológico do indivíduo em um nível suficiente para gerar proteção. Felizmente as doses, até onde se sabe, funcionaram bem.

“Agora vamos precisar analisar as evidências do mundo real, para saber se a proteção das vacinas é a mesma dos resultados interinos. Tem muitos efeitos colaterais que só aparecem na fase 4 de pesquisa [chamada de farmacovigilância], já durante a comercialização”, diz Barbosa.

Um exemplo de efeito adverso encontrado foi a chamada reação anafilática à vacina da Pfizer. Essa condição é grave, pode até mesmo impedir a respiração e requer tratamento médico imediato. Por conta desse risco, por menor que ele seja, a vacina não deve ser aplicada em quem tem alergia grave.

“Não adianta olhar a situação atual com o saudosismo do passado. Temos que ver o que temos hoje: uma tecnologia forte, recurso e a pandemia em curso. Nenhuma salvaguarda de segurança foi quebrada até o momento”, afirma Nogueira.

LINHA DO TEMPO DAS VACINAS

Algumas vacinas levaram mais tempo desde a descoberta do patógeno até sua produção; outras ainda nem saíram do papel.

1000

Há registros de que, há mais de um milênio, já se utilizava na China uma espécie de vacinação, com a inoculação de pessoas a partir das crostas das pústulas de varíola, que eram aplicadas nas narinas

1500

Registros mostram impacto devastador nas Américas da varíola, doença trazida pelos colonizadores; também há registros de doenças na Índia

1699

Surtos de febre amarela acontecem nas colônias americanas

1700

Multiplicam-se os registros da variolação, a prática de aplicar em feridas na pele pó seco de crostas de pústulas da varíola, com a ideia de gerar imunidade contra a doença

1738

Na Carolina do Sul (EUA), entre as pessoas que passaram por variolação, 4% morreram, contra 18% daqueles naturalmente infectados

1757

Em uma tentativa de variolação, o médico escocês Francis Home transmite sarampo de uma pessoa para outra, mostrando que a doença era causada por um agente infeccioso

1796

O médico britânico Edward Jenner testou o poder imunizante da varíola bovina em humanos. Aqueles que tinham contato com as vacas raramente ficavam doentes. Ele inoculou um garoto de 8 anos com a varíola bovina. O menino sofreu, mas se recuperou. Depois, foi ‘variolado’, numa espécie de desafio imunológico pra valer, com o vírus humano. Não teve qualquer reação

1853

Vacinação obrigatória no Reino Unido

1885

Após cinco anos de estudo, Louis Pasteur consegue desenvolver uma vacina contra a raiva. Uma aplicação da vacina após a mordida de um cão raivoso salvou a vida de um garoto de 9 anos. Foram 13 injeções. Uma vacina mais moderna foi lançada em 1971

1899

Vacina contra febre tifoide, após três anos de pesquisa, é usada em milhares de militares britânicos. A incidência dos não vacinados foi o triplo daquela dos vacinados

1921

Acontecem os primeiros testes da BCG, o bacilo Calmette-Guérin, derivado de uma bactéria causadora da tuberculose em vacas. Em 1928, a Liga das Nações passou a recomendar a vacina

1933

O vírus da influenza (gripe) foi isolado, e ficou claro que era esse o causador da doença. Uma vacina foi aprovada em 1945

1935

Primeiros testes de vacinas contra a poliomielite, após 25 anos de pesquisas. As vacinas foram lançadas comercialmente na década de 1950

1951

O cientista Max Theliler recebeu o Nobel de Medicina pelo seu trabalho no desenvolvimento de uma vacina contra a febre amarela, a partir da linhagem 17D, isolada em Gana em 1927

1954

Vírus do sarampo é isolado a partir de amostras obtidas de crianças que sofreram em um surto nos EUA. A primeira vacina foi testada quatro anos depois, em 1958

1967

Após quatro anos de pequisa, a vacina contra caxumba, da farmacêutica Merck, é aprovada para uso

1976

Houve um grande esforço para produzir vacina contra a gripe suína, mas muitas a desenvolveram a condição neurológica conhecida como síndrome de Guillain-Barré. Felizmente aquela epidemia não se disseminou tanto assim

1981

Foi lançada uma vacina contra a hepatite B, a primeira do tipo “subunidade viral”, a partir de proteínas da superfície do vírus presentes no sangue de pessoas infectadas; desde 1986, ela é produzida a partir de micro-organismos

1983

Com a epidemia de HIV/Aids, houve grande esforço para a obtenção de uma vacina. Candidatas já foram testadas, mas nenhuma ainda foi aprovada

1990

Início das pesquisas de possíveis vacinas de RNA, que contém instruções para a fabricação pelo próprio organismo de proteínas dos patógenos, que servem de alvo para o sistema imunológico

1995

Aprovada para uso a vacina contra a hepatite A

2000

Graças à vacinação, mundo consegue derrubar em duas décadas os casos de poliomielite em 99%

2003

Pandemia de síndrome respiratória aguda grave, causada pelo Sars-CoV-1, um coronavírus, assusta o mundo, com letalidade de 9,6%

2014

Uma epidemia de ebola atinge a África ocidental e causa mais de 11 mil de mortos. Candidatas a vacina foram testadas com sucesso

2015

Com a epidemia de zika, vírus capaz de causar microcefalia em bebês, cientistas iniciam testes de vacinas. Até o momento, nenhuma foi aprovada

2015

Após décadas de estudo, primeira vacina contra a dengue é lançada; potencial de agravar uma nova infecção torna vacina apenas recomendada para quem já foi infectado

2019

Primeiros casos de uma doença respiratória, causada por um novo coronavírus, mais tarde nomeado Sars-CoV-2

2020

Vacinas contra o Sars-CoV-2, são aprovadas após menos de um ano de desenvolvimento, com base em estudos anteriores e tecnologias já existentes

EUA autorizam uso emergencial

A FDA, agência reguladora de medicamentos e alimentos nos Estados Unidos, autorizou na noite de sexta-feira (11) o uso emergencial da vacina contra Covid-19 produzida pela americana Pfizer em parceria com a alemã BioNTech.

A chancela deve permitir que a vacinação nos Estados Unidos comece na próxima semana, com profissionais de saúde e idosos que vivem em casas de repouso.

A aprovação pode ter também efeito no Brasil. O Ministério da Saúde negocia com a Pfizer 70 milhões de doses da vacina que, porém, ainda não tem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Uma autorização para uso emergencial – em alguns grupos – no Brasil poderia vir em breve, caso a Pfizer peça a liberação urgente.

Isso porque a lei 14.006 de 2020, aprovada para combate a pandemia da Covid-19, prevê que a Anvisa tem 72 horas para examinar requerimentos de autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de produtos considerados essenciais ao combate ao coronavírus.

Se não ocorrer o exame nesse período, a autorização será automática. O requisito é que os produtos tenham registro em ao menos uma de quatro agências sanitárias estrangeiras. A FDA é uma delas.

Enquanto especialistas afirmam que uma autorização para uso emergencial, como a dada pela FDA, seja suficiente, a Anvisa afirma que seria necessário um registro pleno.

Depois do aval da FDA, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) também precisa autorizar a vacina, o que se espera que aconteça até hoje.

A primeira remessa de 2,9 milhões de doses do imunizante deve ser enviada em até 24 horas depois da autorização da FDA. São 6,4 milhões de doses prontas para serem distribuídas nos EUA – a imunização ocorre em duas doses, aplicadas com intervalo de até três semanas.

Segundo as expectativas do governo, 20 milhões de pessoas serão vacinadas no país até o fim do ano, o que exige 40 milhões de doses de vacina. | FOLHAPRESS

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