A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) perdeu cerca de R$ 2,5 milhões (US$ 500 mil) em um voo frustrado que iria à Índia em janeiro. A meta era buscar 2 milhões de doses prontas da vacina de Oxford/AstraZeneca contra a Covid.
A viagem foi cancelada pela fabricante Serum Institute of India quando a operação já estava montada, após o fracasso nas negociações dos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores.
Com o valor desperdiçado, seria possível comprar 90 mil doses prontas da vacina importada do país asiático, que custa US$ 5,25 a unidade, cerca de R$ 27,40.
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, deverá depor na CPI da Covid do Senado no dia 8 de junho. Ela foi convocada a falar a pedido do presidente do grupo, senador Omar Aziz (PSD-AM), e de Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
Aziz justificou o pedido afirmando que o depoimento de Nísia permitirá elucidar questões relacionadas à parceria com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca para a produção da vacina no Brasil.
Em resposta à reportagem, a fundação afirmou que a contratação foi solicitada pelo Ministério da Saúde e viabilizada por meio da Fiotec (instituto de pesquisas vinculado à Fiocruz), que usou recursos públicos para o pagamento.
A fundação também disse que teve de pagar antecipadamente o valor do contrato com a empresa que iria fretar o voo a Mumbai, a DMS Agenciamento de Cargas e Logística.
O órgão explicou que é praxe do mercado que os contratos de fretamento estabeleçam pagamento adiantado e reserva prévia, sem possibilidade de reembolso.
“Todos os contratos de fretamento no mercado estabelecem pagamento adiantado e reserva prévia, sem possibilidade de reembolso. Portanto, o valor investido nessa operação, de US$ 500 mil, não pode ser recuperado”, afirmou.
O Ministério da Saúde também contratou um avião da empresa aérea Azul para realizar o mesmo serviço. A partida estava prevista a partir de 14 de janeiro.
A aeronave saiu de Viracopos, em Campinas (SP), para o Recife, de onde seguiria viagem. Também chegou a ser adesivada com o logotipo da pasta e exibida nas redes sociais do órgão, no pátio do aeroporto.
O governo vinha tentando antecipar desde dezembro a entrega do lote. O imunizante também será produzido totalmente pela Fiocruz, mas o contrato de transferência tecnológica está atrasado desde o fim de 2020.
O objetivo do governo com a viagem era que as primeiras doses fossem usadas para dar a largada na campanha de vacinação no Brasil. Uma cerimônia no Planalto estava sendo preparada para a ocasião.
O ex-chanceler Ernesto Araújo coordenou, sem sucesso, os esforços para conseguir a liberação da carga a tempo. O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello chegou a mencionar o fuso horário como uma das dificuldades diplomáticas.
O presidente Jair Bolsonaro enviou uma carta ao premiê Narendra Modi, em 8 de janeiro, pedindo urgência.
Depois do fracasso na operação, a Saúde anunciou que iria usar a aeronave (de grande porte, preparada para voos internacionais) na distribuição de cilindros em voos nacionais para conter a crise do material no país.
Questionada desde quarta (26) por meio da assessoria de imprensa, a Saúde não revelou quanto gastou na operação nem como foi feita a outra contratação pela Fiocruz.
A Azul afirmou que foi contratada por um “agente de cargas para realizar o transporte das vacinas provenientes da Índia e estava à disposição do contratante para realizar o serviço”.
A AGU (Advocacia-Geral da União) pediu o arquivamento de uma ação popular movida por um advogado, que tramita na 1ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, e questionava a contratação frustrada, com argumento de dano ao erário.
O órgão disse que o contrato para concessão de vacinas foi celebrado entre o governo indiano e a Fiocruz e que, portanto, cabia à fundação responder.
Segundo a AGU, “a União não possui qualquer ingerência administrativa sobre os procedimentos adotados pela Fundação Oswaldo Cruz para buscar as vacinas na Índia, até porque a União não foi parte no contrato celebrado”. O órgão pediu a extinção do processo.
O juiz Marcelo Gentil Monteiro extinguiu a ação sem analisar o mérito. Porém, cabe recurso tanto pelo autor quanto pelo Ministério Público, caso entenda que seja necessário.
Já a Fiocruz afirmou à reportagem que a definição da modalidade de transporte foi oriunda de negociações entre a Saúde, a AstraZeneca, o Instituto Serum e a própria fundação.
Formalizada a contratação, segundo a Fiocruz, ocorreram interações entre a Bio-Manguinhos (laboratório vinculado à Fiocruz) e o Instituto Serum para a operacionalização da importação.
“Conforme solicitação do Ministério da Saúde para contratação de voo fretado para a realização da operação, o fretamento foi contratado junto à DMS Agenciamento de Cargas e Logística. O recurso usado é da própria fundação de apoio responsável pela contratação”, disse.
A contratação da empresa de transporte foi realizada em processo separado pela fundação para a Fiotec, que dá suporte em frentes de enfrentamento da pandemia da Covid-19.
A data de disponibilização da carga para recolhimento foi firmada em 16 de janeiro e, segundo a fundação, a Saúde lhe solicitou a contratação de voo fretado.
“Posteriormente a todos os procedimentos para a realização da operação de transporte, o Instituto Serum comunicou em 15 de janeiro à Bio-Manguinhos/Fiocruz que a data de 16 de janeiro programada para o recolhimento e transporte ao Brasil não seria mais factível e a carga não estaria mais disponível, e que a continuidade da operação dependeria de uma nova data a ser anunciada pelo instituto”, disse a fundação.
Em nota, a DMS Logistics confirmou que houve a contratação do serviço mencionado. Segundo a empresa, toda a operação foi montada e disponibilizada à Fiocruz “conforme contrato pré-estabelecido e que houve, sim, o cancelamento da operação”.
“De acordo com as cláusulas contratuais entre as partes e com os seus fornecedores, a taxa de cancelamento era de 100% da operação, o que tornou toda a negociação clara e correta”, disse a empresa.