sexta-feira, 19 abril 2024

Sudeste interrompe queda da desigualdade racial no ensino superior do país

Os pretos e pardos de 30 anos ou mais com graduação somam 23 de cada 100 habitantes dessa faixa etária 

o período mais longo revela que o Brasil reduziu em 36% o desequilíbrio entre brancos e negros com ensino superior completo nas duas primeiras décadas do século (Foto: Marcello Casal/ Agência Brasil)

ÉRICA FRAGA, ANGELA PINHO E GUSTAVO QUEIROLO
Folhapress

A desigualdade entre brancos e negros com ensino superior completo ficou estagnada em 2020, após sete anos de queda.

A interrupção da tendência de avanço rumo a uma maior equidade racial se deveu a uma reversão na maior inclusão educacional de pretos e pardos no Sudeste. As outras quatro regiões registraram queda do desequilíbrio racial, apesar das consequências negativas do coronavírus sobre a economia. Esses movimentos foram revelados por uma atualização nos resultados do Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial), ferramenta criada pelos economistas Michael França, Sergio Firpo e Alysson Portella, do Insper.

A cor da desigualdade
O indicador mede a exclusão que pretos e pardos sofrem em estratos privilegiados, como a fatia da população com diploma universitário. A metodologia do Ifer se baseia em dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE.

Segundo os pesquisadores, embora acenda um alerta, a estabilização do componente educacional do índice –que também tem dimensões de alta renda e sobrevida– não significa necessariamente uma mudança na tendência de redução do hiato racial no acesso ao ensino superior.

“Houve uma questão conjuntural de piora dos indicadores de educação, principalmente da população negra, mas também houve mudanças no método de coleta da Pnad, que podem estar se refletindo no índice”, diz Portella.

“É um sinal de alerta, mas precisamos esperar as próximas atualizações.”

Além de estender até 2020 os números do recorte educacional do Ifer para o país, suas 5 regiões e 27 unidades da Federação (UFs), os pesquisadores estimaram seus resultados para o período entre 2001 e 2011. Quando foi divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo em junho, a série histórica do índice começava em 2012.

Agora, o período mais longo revela que o Brasil reduziu em 36% o desequilíbrio entre brancos e negros com ensino superior completo nas duas primeiras décadas do século.

Embora a tendência de redução do hiato racial tenha ocorrido em todo o país, há marcantes diferenças locais, semelhantes às registradas em 2020.

No Sudeste, a região que menos progrediu, a queda foi de 29%. Já no Centro-Oeste, a que mais avançou, a desigualdade racial diminuiu quase 50%.

O índice criado pelos economistas do Insper para a Folha de S.Paulo é um número que pode oscilar entre -1 e 1, em que zero equivale a um cenário no qual a presença de brancos e negros nos recortes analisados reflete exatamente seu peso na população usada.

No recorte educacional, a população de referência são os brasileiros de 30 anos ou mais, com ensino superior completo.
O índice se restringe à comparação entre brancos e negros –grupo que inclui pretos e pardos– devido à dificuldade de incluir indígenas e amarelos, que representam uma pequena fatia da população. “

Números negativos no Ifer indicam que os negros estão sub-representados em relação ao seu peso na população. Números positivos indicam sub-representação dos brancos.

A metodologia do índice foi, inicialmente, desenvolvida por Firpo, França e Lucas Rodrigues –que concluiu há pouco doutorado em economia na USP– para medir a desigualdade na presença de negros e brancos no mercado de trabalho formal.

Com um Ifer em educação de -0,272, o Centro-Oeste é a área geográfica mais próxima do equilíbrio racial. Esse número reflete a seguinte situação: de cada 100 habitantes de 30 anos ou mais, com ensino superior completo, 50 são negros, e 50, brancos. Para que houvesse equidade, segundo o peso populacional de cada grupo, os pretos e pardos deveriam ser 63 de cada 100 moradores com diploma universitário do Centro-Oeste.

No Sudeste, a região brasileira mais desigual, os pretos e pardos de 30 anos ou mais com ensino superior completo somam 23 de cada 100 habitantes dessa faixa etária. Para um equilíbrio, deveriam ser 43 de cada 100.

O progresso de todas as regiões na direção do maior acesso de negros a melhores condições de vida se deve a uma série de políticas públicas. Uma das mais importantes foi a criação de mecanismos para facilitar o ingresso de pretos e pardos no ensino superior.

O primeiro passo veio com as reservas de vaga para alunos de baixa renda, negros e indígenas em universidades públicas estaduais no início dos anos 2000. Batizada de política de cotas, a medida ganhou impulso e, em 2012, virou lei nacional, embora apenas para as instituições federais. Sua adoção em nível estadual depende de decisões dos governos de cada UF ou das próprias universidades locais.

Estudo inédito feito pelo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), da UERJ, no Rio de Janeiro, mapeou as reservas de vagas para diferentes tipos de cotistas nas universidades federais e estaduais do país.

O levantamento revela uma grande variação em nível estadual e regional. Há universidades federais como a Ufob (Universidade Federal do Oeste da Bahia), a UFSB Universidade Federal do Sul da Bahia) e a UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul), em Santa Catarina, que ultrapassam 75% de vagas voltadas às ações afirmativas, muito acima dos 50% exigidos pela lei. Existem também locais com amplos programas de cotas em suas instituições estaduais.

Bahia e Goiás têm, respectivamente, 42,9% e 29,9% de suas vagas nas instituições federais reservadas para esses grupos.
As estaduais em ambos não ficam muito atrás, com fatias de, respectivamente, 40,1% e 26,3%. Os dois estados vão bem no Ifer educação.

“Uma convergência entre a política estadual e a federal tende a refletir um compromisso mais amplo da sociedade de combate à exclusão racial”, diz Jefferson Belarmino, pesquisador do GEMAA.

Há casos, no entanto, em que essa convergência ainda não foi suficiente para garantir uma maior inclusão. Uma análise de indicadores importantes do ensino básico, segundo a cor da pele dos alunos, sugere que isso pode ser explicado, em parte, pelos desequilíbrios raciais muito grandes herdados de etapas anteriores da educação.

O Rio Grande do Sul, por exemplo, também tem uma ampla reserva de vagas para cotistas, mas é o estado com pior desempenho no Ifer, seguido de perto por São Paulo.

As duas UFs –assim como outras de renda alta que vão mal no Ifer, como Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina– apresentam um hiato racial grande em indicadores como a fatia de adolescentes matriculados no ensino médio na idade certa e de jovens que não estudam nem trabalham.

Atual secretária de Educação no Rio Grande do Sul, Raquel Teixeira ocupou o mesmo posto em Goiás por três vezes.
Para ela, uma cultura de valorização da escola pública, onde está a maioria dos alunos negros, estimulada por políticas específicas, contribui para uma maior equidade no estado do Centro-Oeste.

Isso era visível até em detalhes no dia do Enem, porta de entrada para as universidades. “Havia um costume até de paparicar quem ia fazer o exame. As escolas colocavam tapete vermelho para os estudantes, enchiam os corredores de flores, ofereciam lanche.”

Também eram feitos simulados e caravanas que levavam aulas itinerantes para reforçar o conteúdo que seria cobrado a diferentes pontos do estado.

Os jovens negros de Goiás também se beneficiaram das políticas universais que levaram o estado ao posto de melhor rede de ensino médio, segundo a classificação do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).

Teixeira nota uma diferença no Rio Grande do Sul, para onde foi neste ano. Para estimular os jovens de escola pública a prestar o Enem, o estado ofereceu auxílio para pagar a inscrição dos que tiveram o pedido negado pelo MEC. O número de interessados foi pífio: apenas 29.

A pasta tenta mudar isso com iniciativas como a oferta de um quarto ano do ensino médio, programa de recuperação, além de lanche e transporte para os alunos que farão o exame.

“O maior acesso ao ensino superior precisa vir acompanhado de melhoria na qualidade do básico”, afirma Michael França.

Sergio Firpo concorda: “Há muitas frentes de ação para melhoria do equilíbrio racial, mas as mais efetivas parecem ser as que priorizam o equilíbrio racial no acesso à educação de qualidade”, diz o economista.

Ainda que em ritmos distintos, a vasta maioria dos estados brasileiros caminha para uma convergência a um maior equilíbrio racial em educação nas próximas duas décadas, tendência que não foi alterada pela estagnação registrada em 2020.

Assim como o Ifer educação, os componentes de renda e sobrevida do índice serão atualizados nos próximos meses. 

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