sexta-feira, 19 abril 2024

‘O Irlandês’, de Martin Scorsese

Há um momento, em “O Irlandês”, em que Frank Sheeran, o irlandês em pessoa, diz a uma filha que tudo o que fez na vida foi com o objetivo de proteger a família. A frase parece roubada de “O Poderoso Chefão”, mas o sentido é bem outro: o de demonstrar o quanto a visão de Martin Scorsese sobre assuntos da máfia é distante daquela de Francis F. Coppola. 

Isso, aliás, estava claro há muito tempo. A máfia de que Scorsese se ocupou sempre foi a dos pequenos gângsteres, uns pés-de-chinelo que se tomam por grande coisa por pertencerem a um grupo, por causa da companhia, até perceberem que não passavam de bucha de canhão de outros mais poderosos. 

É um tanto diferente o que se passa em “O Irlandês”, em que pela primeira vez Scorsese opta por um tratamento realmente épico para a saga da organização criminosa nos EUA, ou de parte dela. Aqui estão envolvidos desde Frank (Robert de Niro), de início um ex-combatente que trabalha como motorista e faz pequenas trapaças para completar o orçamento. Logo ele se torna o protegido do temível Russ Bufalino (Joe Pesci), chefe mafioso da Pensilvânia, e parte de uma organização com que se envolvem até os Kennedy e Nixon, passando por Jimmy Hoffa (Al Pacino), o poderoso presidente do Sindicato dos Caminhoneiros. No caminho há outros, como Angelo Bruno (Harvey Keitel), chefão da Pensilvânia, e Anthony Provenzano, “caporegime” em N. York. 

Uma gangue da pesada, já se vê, numa organização em que Frank Sheeran era um raro não italiano. Essa gangue encontra, aliás, uma outra: a dos atores que acompanham Scorsese desde o começo de sua caminhada no cinema: De Niro, Pesci, Keitel, a quem virá se juntar, entre outros, Al Pacino. 

A máfia vista por Scorsese não tem nada de romântica. Nem mesmo possui a cerebralidade dos Corleone. Ela é suja, baixa, sangrenta visceralmente. Mas não simples. E a narrativa passa pelas alianças provisórias, pelas lealdades movediças, que se fazem e desfazem ao sabor dos acontecimentos, das ambições de cada um e dos problemas que se apresentam. 

O irlandês não é um homem de grandes ambições. Trata-se de uma figura secundária, de braço armado dos seus superiores, ou seja, um matador. Esse papel secundário faz dele um bom narrador. É quem conta a história. 

Mas, junto com ele, cabe a Scorsese alternar o presente e o passado, uma personagem e outra, um local e outro -lembranças que desenvolve essencialmente ao longo de uma viagem de automóvel ao lado de Bufalino e com as respectivas mulheres no banco de trás do carro. Essa história cheia de realizações (criminosas, em geral) e percalços é narrada de maneira prodigiosamente clara, dada sua complexidade (e complicação também), por Scorsese. 

O diretor é, em tudo que diz respeito à máfia, um anti-Coppola. Mas também em relação ao ritmo esses dois cineastas optaram por caminhos bem diversos. Onde o andamento de Coppola ao tratar da máfia é elegíaco, em Scorsese é nervoso, como se quisesse chamar a atenção não à cerebralidade dos, digamos, Corleone, o de Scorsese parece voltar-se sobretudo à vitalidade, a essa força que impulsiona os seus personagens na aventura e que o levam, aqui, a compor uma de suas obras-primas. 

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