Nadador que agora lutar contra o bullying
Antes de pular na piscina do centro aquático de Tóquio nesta quarta-feira (1º), o nadador Daniel Dias viu faixas e cartazes escritos pela família dele e empunhados pela comissão técnica da seleção.
Era um sinal do que o maior atleta paralímpico brasileiro da história encontraria 50 metros adiante, do outro lado da piscina, quando ele encerrasse sua última participação paralímpica depois de 16 anos e 27 medalhas. Ficar mais perto da família, particularmente dos três filhos que assistiam à prova no Brasil, foi o motivo que levou o nadador a encerrar sua carreira aos 33 anos.
Ao bater a parede da piscina 32,12 segundos depois da largada, ele olhou o placar e viu que tinha ficado em quarto lugar, atrás dos três chineses que dominaram os 50m livres na classe S5, para atletas com limitações motoras. A 28ª medalha não tinha vindo, mas Daniel comemorava já pensando na volta pra casa.
“Cada braçada era pra eles”, disse Daniel depois da prova, emocionado e pensando nos filhos Asaph (7), Daniel (5) e Hadassa (2).”Papai tá chegando em casa. É isso que eu falo pra eles.”
“Deus fez infinitamente mais do que eu pedi ou pensei. Se eu escrevesse isso não seria tão perfeito quanto foi. Não é choro de tristeza. Estou feliz. É uma vida dedicada a isso aqui”
por Daniel Dias, maior paratleta brasileiro
Carreira e conquistas
A malformação congênita de Daniel, que nasceu com os braços e pernas incompletos, o levaram à classe S5 da natação olímpica e foi nessa classe que ele se tornou o brasileiro com mais medalhas da história das Paralimpíadas. Em Londres, ele venceu todas as seis provas que disputou e no Rio seguiu dominante.
Antes de Tóquio, o Comitê Paralímpico Internacional fez uma nova reclassificação, levando atletas que antes disputavam uma classe com menos limitação motora para a S5.
Daniel criticou a mudança e chegou a dizer que competir com nadadores com menor limitação tiraria suas chances de título. Ele sai do Japão com três bronzes (nos 100m livre, 200m livre e no revezamento 4×50 livre misto).
Nos 50m, o medalhista de ouro Tao Zheng terminou quase dois segundos à frente do brasileiro. Zheng, assim como os outros chineses que completaram o pódio, competiam antes na classe S6 e foram reclassificados, dominando a S5.
Com 27 medalhas, sendo 14 de ouro, Daniel encerra a carreira como o terceiro maior campeão da natação paralímpica masculina. O canadense Michael Edgson, que competiu entre 84 e 92, conquistou 18 ouros. O britânico Mike Kenny ganhou 16 ouros entre 76 e 88.
A maior atleta paralímpica da história é a nadadora americana Trischa Zorn, com impressionantes 41 ouros e 55 medalhas entre 1980 e 2004.
Vítima de bullying na infância, nadador quer combater preconceito
Daniel pensou muito antes de decidir se aposentador após quatro Paralimpíadas. A sensação de ter conquistado tudo o que se propunha quando caiu na piscina pela primeira vez e os filhos foram suas principais motivações.
“Abdiquei de muitas coisas para alcançar o objetivo. Por viajar muito e fazer preparação fora do país, acabei perdendo muitas coisas dos meus filhos. Entendo que são ciclos na vida e meu ciclo como atleta finalizou. Creio que contribuí muito para o movimento paralímpico e para o esporte brasileiro. Não vou sair do esporte, mas entendi que como atleta poderia encerrar”, disse ele, em entrevista ao site UOL Esporte, feita antes do embarque ao Japão.
.@DanielDias88 terminou em 4º lugar os 50m livre S5 nos #JogosParalímpicos de Tóquio. Ele encerra hoje sua carreira, mas o nome na história é para sempre. São 27 medalhas paralímpicas, diversos mundiais e prêmios. Referência para toda uma geração de atletas. Obrigado! Por tudo! pic.twitter.com/z88ZFRPr8a
— Comitê Paralímpico Brasileiro -ブラジルパラリンピック委員会 (@cpboficial) September 1, 2021
Além de ficar mais perto da família, Daniel pretende aproveitar sua influência no esporte para conscientizar a população contra o preconceito e o bullying, de que foi vítima na infância e adolescência. O multicampeão quer usar sua influência nas redes sociais para atingir outras pessoas. Hoje ele tem 96,7 mil seguidores só no Instagram.
“Tudo que eu conquistei no esporte foi com muita dedicação e perseverança. Criei um nome. Creio que posso ser um influenciador positivo. Sou exemplo para muitas pessoas, inclusive as sem deficiência. Quero passar a mensagem “Sorria para a vida”. Que em um futuro, a gente pare com o bullying e o preconceito. Temos que entender que somos diferentes, sim, mas iguais em capacidade”, destacou Daniel.
“Sei que é um sonho distante, mas queria acabar com o preconceito. Vai ser um trabalho de formiguinha, mas pouco a pouco a gente vai evoluindo nisso”, afirmou. Assim como muitas crianças com deficiência, Daniel sofreu perseguição na escola e chorou muito no colo de seus pais ao retornar para casa. O paulista diz que sua família foi essencial na construção de sua autoestima.
“Meus pais foram fundamentais. A gente sempre pôde conversar muito. Com eles, eu aprendi que o preconceito existe, mas que não poderia existir dentro de mim. Seja você loiro, moreno, tenha deficiência ou sofra bullying, não pode achar que é inferior. Meus pais falavam que, independente da deficiência, eu ia conseguir aprender a escrever e jogar futebol, assim como meus colegas. Fui entendendo isso ao longo da infância e adolescência. E quando a gente absorve, chega longe e realiza grandes coisas”, comentou o atleta.
A deficiência física não impediu Daniel de fazer muitas atividades que queria. Ele sempre jogou futebol com os amigos e, ainda criança, aprendeu a tocar bateria. Depois de adulto, aprendeu a andar de bicicleta, o que pretende fazer com os filhos quando voltar ao Brasil.
“Sim, eu tenho a deficiência. Pode ser uma característica minha, mas não é uma definição. Temos que entender isso. Você pode ser diferente, mas isso não vai te definir. Já sofri e ainda sofro. Não é porque eu sou o Daniel que ganhou as medalhas que não passo mais. Com 33 anos, eu conheço o olhar de admiração e o olhar de preconceito. A gente vai aprendendo a lidar com isso. Quero ensinar muitas crianças a encarar também”, completou.
Filhos ajudaram a treinar na pandemia
Assim como a maioria dos atletas e paratletas, Daniel precisou de muita criatividade para manter os treinamentos durante a pandemia. O multicampeão não teve acesso às piscinas durante um longo período e contou com a ajuda dos filhos para treinar.
“Virei um peixe fora d’ água. O nadador precisa de água. Foi difícil conseguir piscina para manter os treinamentos. A gente teve que ficar em casa e se reinventar. E eu passei a me exercitar com os meus filhos. Alguns atletas têm peso de academia em casa e eu tenho os meus filhos [risos]. Foi divertido ao mesmo tempo, porque usei eles para fazer um agachamento, um abdominal e mantive o máximo que eu conseguia”, contou.
Esse tempo com as crianças foi um aperitivo do que espera Daniel nos próximos anos. Asaph, Daniel e Hadassa ficaram felizes ao saber que poderão curtir o pai por mais tempo graças à aposentadoria.
“Tentei explicar que deixaria as piscinas com todo o cuidado, porque eles são pequenos… Achei que eles iriam ficar bem tristes, para ser sincero, só que eles pularam de alegria. Começaram a listar várias coisas que eu poderia fazer com eles. ‘É isso mesmo… Papai vai conseguir fazer tudo isso com vocês’. Isso pesou bastante para que eu pudesse tomar essa decisão. Não foi fácil, mas eu estou em paz.”