sexta-feira, 19 abril 2024

‘Zé Pulga’: saga de causos e bola

Os cabelos são branquinhos. Mas o brilho nos olhos é o mesmo. O “Zé Pulga” chama os meninos pelo nome. Fala da habilidade de cada um com a bola nos pés. Comenta o estilo de jogo, elogia as jogadas, dá dicas de como melhorar o passe. 

Sempre foi assim. José Antônio Rodrigues, senhorzinho de 80 anos, fez história como treinador. Ele foi técnico nas categorias de base do Rio Branco, de Americana, por mais três décadas. Ao mesmo tempo, treinou as seleções que defendiam a cidade nos Jogos Regionais ou nos Abertos. 

A história do Zé Pulga já virou tema de livros, reportagens, documentários. É admirado por jogadores e cartolas de qualquer época. 

Treinou garotos que explodiram na base do Tigre, e brilharam como profissionais. Marcos Senna, Marcos Assunção, Macedo, Sandro Horoshi, Flávio Conceição… 

Trajetória de respeito, que lhe rendeu até uma placa de homenagem, afixada do Estádio Décio Vitta. O Zé se aposentou há 15 anos. Mas não parou. 

Continua treinador. E foi um dos responsáveis pela criação de um trabalho fantástico que alia lazer, esporte e educação, reunindo a garotada para jogar bola no velho e amado Estádio Victorio Scuro, ali na Conserva. 

O antigo campo do Vasquinho hoje é a sede do Colorado. Camisa tradicional do futebol amador. O time, de 77, chegou a encerrar suas atividades. Mas renasceu nas mãos do Zé Pulga. 

Ele, o Messias e o Zé Walter treinam a molecada, todos os dias da semana. Tem sub-10, sub-12, sub-14, sub-15, sub-16. E tem também a criançada pequenina, correndo atrás da bola aos sábados. 

O projeto fantástico é administrado pelo médico Rogério Panhoca, que arregaçou as mangas e consegue pela cidade toda a ajuda de patrocinadores. As arquibancadas e vestiários foram reformados, há novos sanitários, prédio-sede. 

A GARORATA DO COLORADO | Time do projeto social usa camisa vermelha

Gramado aberto para molecada de toda classe, todo credo, toda cor. Mas que inegavelmente presta um serviço importantíssimo de amparo a crianças de origem humilde, muitos em situação de risco. “A gente ajuda tirar a criança da rua, ensina a jogar bola”, fala o Zé, que vê naquelas histórias de vida um espelho de sua própria. 

RUA DE TERRA 

Zé Pulga nasceu em Americana mesmo. O pai, Antônio, era pedreiro. A mãe, Sebastiana, ele nem lembra da voz. Ela se foi quando o Zé tinha só um ano e nove meses. “Tem a foto do casamento dos meus pais. É a imagem que eu tenho dela…”, diz o treinador, comovido.

VICTÓRIO SCURO | Estádio tradicional é palco de escolinha de futebol

Ele lembra, de menino, das ruas de terra ali pelos lados do Dom Bosco. “A rua (Tuiuti) era de terra, os lotes cheios de mato. Eu jogava de atacante, com a molecada, no rapadão”, lembra. 

O APELIDO 

Ah, de pequeno vem o apelido. Pulga. É que ele “tomou um reio” do próprio pai, quando deu “no pé da orelha” de um moleque “que estava enchendo o saco”. O seu Antônio não gostou da cena. Desceu a cinta no lombo no filho briguento, que “pulava feito pulga pra escapar”. 

E os colegas que viam tudo não perderam a chance. “Olha a pulga pulando, olha a pulga”. Pronto. Nasceu o apelido da vida inteira. 

MÃO AMIGA 

Bom, a cidade cresceu. O Zé Pulga também. Ele fez o Tiro de Guerra ali no começo da Cillos, onde hoje é a sede da guarda-mirim. Foi o Osvaldo, um dos sargentos do TG, quem lhe arrumou um terreno lá no loteamento novo, no alto do morro. É, lá onde brotava o São Domingos, o Zé Pulga ergueu sua casinha. E se casou com a Dolares. Há 60 anos. 

Detalhe. Ele trabalhava de pintor. Construiu a casa com portas e janelas usadas. Até o vaso sanitário era de prédio reformado. Tempo difícil. “Os amigos levavam até comida pra garantir o almoço lá em casa “, conta, emocionado. 

E o terreno? Ah, ele pagava o sargento Osvaldo como dava, quanto dava, quando dava. O sargento foi uma mão amiga daquelas, inesquecível. 

TOPO GIGIO 

E a bola? Como começou? Bom, o Zé era o treinador de um time de meninos lá do São Domingos. Foi campeão do torneio início de um campeonato infantil disputado no campo do Victorio Scuro. Copa Topo Gigio (personagem infantil da TV, daquela época). 

O time deu um show. E o Zé Pulga foi convidado na hora pra treinar a base do Vasquinho,time profissional da cidade. Lá em 69. Depois, o time foi mudando de nome. Virou AEC, Rio Branco… E o Zé Pulga não saiu de lá. Era voluntário no começo, virou funcionário depois. 

Na prefeitura foi igual. No começo, trabalhou de graça. Depois, contratado pelo antigo Decet, começou a ter salário para treinar os times da cidade. 

“O FUTEBOL NÃO É MAIS O MESMO…”
Campo da Conserva era casa do Vasquinho, na década de 60

Mais que ninguém, o Zé Pulga sabe. O futebol mudou. Não é mais o mesmo. Os times do Interior foram definhando. E o treinador culpa a Lei Pelé. Ele explica que, antes, o time investia na base, revelava jogador, vendia para time grande, se mantinha. 

Hoje, o olheiro na arquibancada vê o menino talentoso, o leva para jogar no time grande, e o clube que o revelou não ganha um tostão. Ah, também tem as “modernidades”: adolescente que fica na Festa do Peão até de madrugada e falta do treino. Dá mais valor pra balada e pra namorada. Mas é a vida. É o mundo. Hoje, a sua proposta de vida é ajudar a garotada no Colorado. “Pra retribuir toda ajuda que tive na vida. Me ajudam muito. Hoje, eu ajudo também”, resume. 

Quando está longe do Victorio Scuro, ele vai pra casa. Mora na chácara. Coladinha ao Jardim Brasil, perto da Praia do Namorados. Curte o silêncio, o luar, a Dolores (companheira da vida inteira), os cinco filhos, os sete netos, os dois bisnetos. 

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