domingo, 18 maio 2025

O voto da fé

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) confirmou que o Estado e a Religião foram apartados pela Constituição republicana de 1891 – e qualquer tentativa daquele de imiscuir-se em assuntos religiosos infringe o artigo 19 da Carta Magna que veda ao poder público, entre outras iniciativas espúrias, embaraçar (o termo vem de 1891) o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas. E o tribunal ainda se dobrou, em rara abdicação legislatória, ao artigo 5º, inciso XXXIX, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina…”

O reconhecimento indireto dessas verdades evidentes por si mesmas foi feito quando o plenário do TSE recusou proposta do ministro Edson Fachin de conceber um instituto jurídico que identificaria o abuso do poder religioso. A nova infração eleitoral alcançaria, em exemplo hipotético, candidatos ou ministros religiosos que se valessem da fé para influenciar se não coagir os fiéis – prática recorrente nos templos e na propaganda eleitoral. Eis um episódio raro de poder que se autolimita, pois a carruagem que anda em nossa estrada institucional segue abarrotada de novas normas cuja promulgação não estava na alçada dos cocheiros. Volta e meia, tanto o TSE como a Justiça do Trabalho ou o Conselho Nacional de Justiça, além de órgãos do Executivo, a exemplo dos tributários e ambientais, “legislam” em aberta usurpação das atribuições do poder competente para fazê-lo, que está afeto, como diz o próprio nome, ao Legislativo. Instruções, portarias, resoluções e interpretações que em rigor são revisões antípodas de textos legais assoberbam o ordenamento jurídico legítimo, promulgado pelos legisladores. Criado em 1932, o TSE é uma fecunda usina de “leis”: já editou quase 24 mil resoluções – uma das últimas, a de n.º 23.609/2019, com aparência e linguajar de lei, “dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos para as eleições.”

A pretensão de criar um tipo de crime na legislação eleitoral foi barrada em virtude da clamorosa evidência de que tal achega dependeria de lei, e não de acórdão de tribunal. Os casos tipificados como abusos nas eleições, de poder econômico ou político, constam da Constituição (§ 9.º do Art. 14) e das leis – ordinária n.º 9504/1997 e complementares de Inelegibilidades (n.º 64/1990) e da Ficha Limpa (n.º 135/2010) – e demandam induvidosa e ampla comprovação. Para punir suposto abuso religioso, o primeiro problema é precisamente a prova, como deixou claro o julgamento do processo que motivou a proposta do ministro Fachin. O tribunal apreciava denúncia contra uma pastora evangélica que supostamente se elegeu vereadora usando sua ascendência religiosa para obter o voto dos prosélitos – mas foi absolvida pelo TSE, inclusive com o voto de Fachin. (…)

Ainda que tal quadro mereça reflexão, a criminalização genérica da influência religiosa nas eleições abriria a caixa de Pandora para a livre expansão de outros males – como a incriminação de editoriais e reportagens da imprensa, campanhas corporativas em favor de candidatos das guildas de toda ordem e associações de negócios que indicam candidatos. Qualquer apoio desses grupos, e até manifestação de influente autoridade (“o presidente, o governador, o senador apoia o candidato tal…”) poderia dar margem a Investigação Judicial Eleitoral ou Impugnação de Mandato Eletivo, ao fundamento de “abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” citado na Constituição.

A Lei n.º 9.504/1997 já proíbe a “veiculação de material de propaganda eleitoral” nos templos, como, por sinal, em todos os “bens de uso comum” – e deveria ser aplicada. Fora disso, a questão está mais para a ética que para a lei. Em outras palavras, é assunto de Deus e não de César.

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