quinta-feira, 28 novembro 2024

Com ataques a eleições, Bolsonaro repete ‘manual’ de Trump

Polícia Federal cita 

que a estratégia de canais bolsonaristas inclui a disseminação de “notificas falsas” de forma “rápida, contínua e repetitiva”  

Bolsonaro segue o “manual” de Trump no ataque ao sistema eleitoral – Alan Santos/PR

As reiteradas tentativas de abalar a confiança no sistema eleitoral brasileiro conduzidas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seguem um “manual” similar ao adotado pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump, no qual alegações de fraudes em votações são repetidas de forma contínua e suspeitas são levantadas mesmo em caso de vitória.

Ao pedir ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a suspensão de pagamentos, por plataformas digitais, para canais que espalham mentiras sobre as eleições no Brasil, a Polícia Federal afirmou que a rede de apoiadores de Bolsonaro usa a mesma estratégia de comunicação adotada por Trump em 2016.

Segundo a PF, trata-se da criação de canais, especialmente nas redes sociais, para simular comunicação direta com o eleitorado, enquanto se promove “ataque aos veículos tradicionais de difusão de informação (jornais, rádio, TV etc.)”, diz o documento revelado pelo jornal Folha de S.Paulo.

O relatório policial também afirma que “esta rede pretende (…) diminuir a fronteira entre o que é verdade e o que é mentira.” O documento também afirma que o “modelo de difusão de notícias falsas” inclui a disseminação de conteúdo de forma “rápida, contínua e repetitiva” para gerar “familiaridade com a informação e, consequentemente, sua aceitação”, assim como a falta de “compromisso com a verdade” e “com a consistência do discurso ao longo do tempo”.

‘Fraude’ mesmo na vitória

Trump e Bolsonaro recorreram a este tipo de prática mesmo quando estavam em vantagem eleitoral. Em 2016, quando Trump venceu nos EUA, aliados mantinham o movimento Stop the Steal (“parem o roubo”, em português), que tentava “comprovar” que uma fraude garantiria a vitória da democrata Hillary Clinton, explica relatório do centro de estudos Southern Poverty Law Center (SPLC).

Um dos pilares da campanha era acusar o sistema eleitoral dos EUA de fragilidades que permitiriam, supostamente, a manipulação do resultado. Segundo a campanha de Trump, os votos pelo correio — permitidos em alguns estados americanos — eram violáveis e deveriam ser descartados, apontou o SPLC.

Trump também acusava governadores de registrar imigrantes ilegais como eleitores e de permitir que pessoas se passassem por outras para votar mais de uma vez. Em 2018, nas eleições para governadores e senadores nos EUA, e em 2020, nas eleições presidenciais em que Trump foi derrotado por Joe Biden, as acusações retornaram.

No Brasil, Bolsonaro afirma que as urnas eletrônicas não são seguras porque não imprimem um comprovante de voto e não seriam auditáveis — embora sejam, segundo o TSE, e nunca tenha havido registro de fraude eleitoral desde a adoção das urnas eletrônicas.

Como o ex-presidente americano, Bolsonaro atacou as eleições mesmo quando estava a ponto de vencê-las. O então candidato falou em “fraude” nas urnas eletrônicas e na necessidade de um “voto impresso” no dia do primeiro turno de 2018.

Em paralelo à tramitação da recente proposta de voto rejeitada na Câmara, Bolsonaro reforçou acusações infundadas. Em live no fim de julho, o presidente reciclou mentiras para alegar fraudes. Um levantamento do site Aos Fatos mostra que à medida que se aproximava a votação do projeto, Bolsonaro deu cada vez mais declarações contrárias às urnas eletrônicas.

Conexão internacional

Para pesquisadores ouvidos pelo reportagem, as semelhanças entre Trump e Bolsonaro nos ataques aos sistemas eleitorais não são ocasionais.

“Bolsonaro tem uma inspiração muito direta nas ações de Trump”, afirma a cientista política Rosemary Segurado, professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). “Para eles, pouco importa se o voto é impresso, eletrônico, digital ou seja lá de que forma. O que importa é deslegitimar o processo eleitoral pensando que as eleições são um dos pilares da democracia representativa liberal.”

“Está tudo interligado”, afirma a escritora Michele Prado, que acaba de publicar no livro “Tempestade Ideológica” (editora Lux) sua pesquisa sobre a ascensão do bolsonarismo e da extrema-direita no Brasil e no mundo. “Quando Bolsonaro começou a falar em fraude nas urnas e a defender o voto impresso, a direita brasileira já vinha recebendo esse conteúdo há pelo menos quatro ou cinco anos por meio dos canais da direita americana, isso já estava introduzido nas bolhas da direita daqui.”

Mas, tanto nos EUA quanto no Brasil, as declarações sobre fraudes nos sistemas eleitorais não passam disso: declarações. Bolsonaro, por exemplo, já admitiu não ter provas de fraude nas eleições de 2018.

No início de agosto, a APCF (Associação Nacional de Peritos Federais), que reúne peritos da PF, divulgou uma nota explicando que participam de testes periódicos de segurança das urnas e que, “até o momento, não foi apresentada qualquer evidência de fraudes em eleições brasileiras”. Uma análise da área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) chegou à conclusão de que as urnas eletrônicas são seguras e auditáveis.

Nos EUA, estudo do Brennan Center for Justice, um centro de pesquisas da New York University, concluiu que “extensivas pesquisas revelam que fraudes [eleitorais nos EUA] são muito raras, falsos eleitores literalmente não existem e muitas das alegações de fraude são, na verdade, erros de eleitores e mesários. É possível dizer o mesmo a respeito dos votos por correspondência”.

Manual do populista

De acordo com o cientista político Christian Lynch, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Trump e Bolsonaro não inventaram as estratégias que adotam para mobilizar suas bases. Segundo ele, “todo populista de direita — ou de extrema direita — se define como a encarnação do povo. Como não existe povo, só existem eleitores, e o populista que diz estar do lado do povo não pode nunca perder uma eleição, se perder, é porque houve fraude”.

Na análise de Lynch, os ataques às urnas são “uma estratégia para mudar as regras do jogo, minar a credibilidade do sistema eleitoral e fraudá-lo”. Tanto Bolsonaro quanto Trump, na avaliação de Lynch, são exemplos do que ele chama de “dilema do parasita”.

“Eles atacam o sistema, mas precisam estar dentro do sistema para atacá-lo”, explica. “E os governos são sempre muito ruins, eles transformam tudo em programa de auditório, como se a democracia tivesse ficado muito chata. E por isso não se reelegem. E aí falam em fraude.”

Para Michele Prado, “eles falam em voto impresso e fraude eleitoral, mas poderia ser qualquer outra coisa.”

O objetivo é descredibilizar as instituições democráticas com a mobilização do povo para provocar uma ruptura. Havendo voto impresso ou não, Bolsonaro vai continuar investindo em teorias conspiratórias.”Michele Prado, pesquisadora e escritora

Nem tudo é igual

Christian Lynch afirma ainda que Bolsonaro copia Trump “porque é mais fácil, os sistemas são parecidos”. Mas ele ressalta que há diferenças importantes. Por exemplo, os EUA não têm Justiça Eleitoral. Lá existe um colégio eleitoral em que cada estado tem representantes que votam de acordo com o resultado das urnas em seus estados.

Quem declara o vencedor do pleito é o presidente do Senado, cargo ocupado pelo vice-presidente da República. Por isso, as milícias apoiadoras de Trump invadiram o Capitólio, sede do Congresso dos EUA, no dia 6 de janeiro. “Aqui, teriam de invadir a sede do TSE! O que fariam por lá?”, ironiza Lynch.

Ele também aponta para o federalismo norte-americano: nos EUA, os estados são mais autônomos que no Brasil. Ao mesmo tempo, o sistema partidário brasileiro é “extremamente pulverizado”. Fora isso, o Judiciário brasileiro é mais forte que o dos EUA, diz Lynch, o que obrigaria Bolsonaro a colocar seus apoiadores, inclusive as Forças Armadas, contra o Supremo, “o que não é tarefa simples”.

Para Rosemary Segurado, uma “diferença fundamental” entre Trump e Bolsonaro é o apoio que o presidente brasileiro tem das polícias militares estaduais. Mesmo assim, ela duvida da possibilidade de um golpe de Estado diante do significado de algo do tipo.

“O Brasil não é um país insignificante na geopolítica mundial. Haverá uma reação internacional muito forte se houver realmente um golpe, ninguém assistirá parado. Mas é importante observar as movimentações desse contingente armado. Se isso não for contido, podemos ver cenas piores que no Capitólio”, diz ela.

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