quarta-feira, 27 novembro 2024

Em voo secreto, Itamaraty buscou vacinas da Índia por 10% do valor pago pelo Ministério da Saúde

Após dois fretamentos fracassados e prejuízo de US$ 500 mil para Fiocruz, diplomatas fizeram operação por US$ 55 mil sem conhecimento da pasta  

Avião da Azul foi adesivado para viagem na qual deveria buscar vacinas de Oxford e AstraZeneca na Índia em janeiro – Tony Winston/Ministério da Saúde

Após as tentativas frustradas de buscar 2 milhões de doses de vacina na Índia em janeiro deste ano, que geraram um prejuízo de US$ 500 mil (R$ 2,6 milhões na cotação atual) para a Fiocruz, o Itamaraty negociou secretamente com o governo indiano e conseguiu transportar as mesmas doses por US$ 55 mil (R$ 288 mil na cotação atual), cerca de 10% do valor pago pela fundação.

Toda a operação foi feita em sigilo, e o Ministério da Saúde só soube quando a carga de vacinas já estava prestes a embarcar no avião da companhia aérea Emirates no aeroporto de Mumbai.

O afobamento e as trapalhadas do governo Jair Bolsonaro, principalmente da pasta da Saúde, já tinham produzido dois fiascos na busca de vacinas.

O ministério, na época sob o comando do general Eduardo Pazuello, havia determinado à Fiocruz que fretasse um avião para buscar as vacinas na Índia no dia 16 de janeiro. Ao mesmo tempo, negociou com companhia aérea Azul um outro voo para buscar as mesmas vacinas.

Bolsonaro havia determinado que as vacinas tinham que chegar, de qualquer jeito, antes do dia 20 de janeiro — data em que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), iniciaria a vacinação com a CoronaVac.

Telegrama diplomático mostra que, em 9 de janeiro, foi enviada uma carta de Bolsonaro ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, “recordando a importância do prazo do dia 20”, e o ministério indiano teria reiterado “não poder comprometer-se ainda com datas”.

Doria acabou começando a vacinação em 17 de janeiro. As vacinas da Coronavac, produzida pelo Instituo Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, foram transportadas ao Brasil em voo comercial da companhia turca Turkish Airlines.

Fretamento

A Fiocruz assinou em 13 de janeiro um contrato de fretamento de um avião para Mumbai com a DMS Agenciamento de Cargas e Logística, conforme instrução do Ministério da Saúde, para buscar as doses no dia 16.

Naquele momento, no entanto, não havia garantia de que o governo indiano fosse liberar as cargas dentro do período proposto. No dia 14, um porta-voz da chancelaria indiana, em briefing semanal à imprensa, disse ser “cedo demais” para o envio de vacinas a terceiros países naquela semana.

Um dia depois, segundo telegrama do Itamaraty, o embaixador da Índia no Brasil, Suresh Reddy, reiterou pedido para que não fosse enviado “o voo especial para transporte das vacinas até que sejam concluídas as autorizações formais pelo lado indiano”.

A fundação teve de pagar antecipadamente o valor de US$ 500 mil, estipulado no contrato com a empresa de logística, conforme o jornal Folha de S.Paulo revelou em maio.

“O Ministério da Saúde solicitou à Fiocruz a contratação de voo fretado para a realização da operação”, disse a Fiocruz em nota.

“Posteriormente a todos os procedimentos para a realização da operação de transporte, o Instituto Serum comunicou em 15.01.2021 à Bio-Manguinhos/Fiocruz que a data de 16.01.2021 programada para o recolhimento e transporte ao Brasil não seria mais factível e a carga não estaria mais disponível, e que a continuidade da operação dependeria de uma nova data a ser anunciada pelo Instituto”. Completou.

Eduardo Pazuello era o ministro da Saúde quando o governo federal fracassou em trazer vacina da Índia – Tony Winston/MS

Segundo a Fiocruz, o contrato não previa reembolso. “Todos os contratos de fretamento no mercado estabelecem pagamento adiantado e reserva prévia, sem possibilidade de reembolso. Portanto, o valor investido nessa operação, de US$ 500 mil, não pode ser recuperado”, disse o instituto em nota, em maio.

Ao mesmo tempo, e sem o conhecimento da Fiocruz, o Ministério da Saúde também contratou um avião da Azul para realizar o mesmo serviço.

No dia 13 de janeiro, o ministério divulgou uma nota afirmando: “Um avião da empresa aérea Azul sairá do Brasil na noite desta quinta-feira (14 de janeiro) com destino a Mumbai, na Índia, para buscar 2 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca/Oxford, adquiridas pelo Ministério da Saúde para garantir o início da imunização dos brasileiros. O Airbus A330neo —maior aeronave da frota da companhia— decolará do Aeroporto de Recife (PE) às 23h. A previsão de retorno é no próximo sábado, dia 16.”

Na nota, havia também uma declaração do então ministro Pazuello: “É o tempo de viajar, apanhar e trazer. Já estamos com todos os documentos de exportações prontos”.

No dia 14, a aeronave saiu de Viracopos, em Campinas (SP), para o Recife, de onde seguiria viagem. Chegou a ser adesivada com o slogan “Brasil imunizado: somos uma só nação” e exibida nas redes sociais do ministério. Os indianos foram pegos de surpresa. Logo depois, o governo anunciou que o transporte das vacinas teria de ser adiado.

Depois do fracasso na operação, o Ministério da Saúde anunciou que iria usar a aeronave na distribuição de cilindros de oxigênio. Indagada, a assessoria da pasta não especificou quanto foi gasto na operação com o voo da Azul, nem o motivo pelo qual foram contratados dois fretamentos ao mesmo tempo, sem garantia de que as vacinas estariam disponíveis na Índia.

A precipitação do governo brasileiro ao anunciar a chegada das vacinas causara saia justa para o primeiro-ministro Modi. O Brasil nem avisou aos indianos que iria anunciar a chegada das vacinas. O governo da Índia, por conta da pressão política interna, não podia anunciar exportação de vacinas antes de iniciar a vacinação no país, e antes de doar para países vizinhos.

Na terceira tentativa de buscar as vacinas, o Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores indiano resolveram fazer tudo em sigilo, sem o envolvimento da Saúde, para que não houvesse risco de vazar a informação ou de haver pressão do Palácio do Planalto para alguma divulgação.

Foi só no dia 19 de janeiro que o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, comunicou que a carga de vacinas seria liberada no dia 21. Ele solicitou “reserva e discrição”, e as duas chancelarias acordaram a divulgação conjunta da informação somente às 6h do dia 22 de janeiro.

O Ministério da Saúde não participou das deliberações, e o Itamaraty atuou em paralelo. “Tão logo recebida a decisão do governo indiano de autorizar a exportação de 2 milhões de doses da vacina Covishield para o Brasil, o Posto buscou assegurar que seu transporte fosse efetuado o mais rapidamente possível. Nesse contexto, chegou ao entendimento com a empresa Serum (SII) que a forma mais rápida e eficiente seria a opção de transporte por avião comercial de carga, conforme a prática usual do fabricante, que é o maior exportador de vacinas do mundo”, diz um segundo telegrama enviado pela Embaixada do Brasil em Déli, no dia 22 de janeiro.

O mesmo telegrama relata que o custo do transporte seria US$ 55 mil e pergunta de que forma o governo brasileiro iria fazer o pagamento. Pazuello só soube do voo na última hora, quando as vacinas já estavam no aeroporto de Mumbai.

A reportagem questionou a Fiocruz sobre o motivo de o valor do contrato fechado com a empresa de logística ser quase dez vezes maior do que o pago para a Emirates fazer o mesmo serviço.

“O Ministério da Saúde solicitou à Fiocruz a contratação de fretamento para essas vacinas. O transporte não poderia ser realizado apenas mediante o fretamento de um voo comercial, uma vez que o transporte de imunobiológicos envolve um conjunto de serviços complexos que exigem a contratação de uma empresa especializada em serviços dessa natureza”, respondeu a Fiocruz, em nota.

“No caso da operação para o fretamento das vacinas da Índia, os serviços contratados da empresa DMS Agenciamento de Cargas e Logística consideravam não apenas o fretamento do voo, mas toda a operação, ou seja, a cadeia logística desse transporte, desde a retirada da carga da farmacêutica na Índia até a sua chegada na Fiocruz, incluindo ainda o aluguel de equipamentos especiais para a manutenção de temperatura da carga durante todo o trajeto e a tramitação aduaneira”, acrescentou.

Procurado diversas vezes por telefone e email, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.

O Itamaraty afirmou que os custos da operação de importação foram cobertos pela Fiocruz. “A atuação do Itamaraty no enfrentamento da atual crise sanitária é coordenada com os órgãos do governo federal responsáveis pelo tema.”

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